Ano: 1500

Escravidão e tráfico de escravos

A utilização da mão de obra escrava e o tráfico de escravos são temas sensíveis para a história e as ciências humanas. Isso porque a escravidão não foi apenas a base de um sistema econômico, o antigo sistema colonial vinculado ao capitalismo mercantil, mas porque deixou marcas profundas nas sociedades, nos sujeitos históricos, na cultura e na formação das identidades.

Uma pessoa escravizada é propriedade do senhor que a escraviza, estando sua vontade, seus direitos e sua autonomia produtiva sujeitas à autoridade e ao controle de seu dono. “Na escravidão, transforma-se um ser humano em propriedade de outro, a ponto de ser anulado seu próprio poder deliberativo: o escravo pode ter vontades, mas não pode realizá-las” (PINSKY, 2020, p. 11).

Apesar de a escravidão ser conhecida de inúmeras formas na história, desde a Antiguidade, somente a partir do século XV, com a expansão marítima europeia, é que se vê o surgimento de um sistema colonial fundado no escravismo. Esse sistema foi o grande modelo administrativo e social do qual emergiu o Brasil Colônia (ALENCASTRO, 2000, p. 9).

A experiência portuguesa com a mão de obra escrava desenvolve-se a partir de 1441, com o navegador e nobre português Antão Gonçalves, que retorna a Portugal de uma expedição trazendo para o infante Dom Henrique alguns homens capturados na costa do Saara. Naquela ocasião, Portugal encontrava-se com a população desfalcada por conta da guerra de independência contra Castela e de uma série de epidemias.

O problema da mão de obra agravou-se com a aventura colonial no ultramar, uma vez que a migração de homens portugueses para a África e as Índias se tornava cada vez mais intensa. “Assim, o escravo seria uma compensação, ao menos parcial, dessa perda populacional, uma condição para viabilizar as chamadas “conquistas ultramarinas” (PINSKY, 2020: 13).

Se, a princípio, a captura de escravos ocorria de forma mais ou menos aleatória, a partir de 1444 a prática ganhou traços específicos. Naquele ano, uma expedição partiu de Portugal estritamente para a prática da escravização de africanos, retornando com mais de duzentos nativos capturados.

Em poucos anos, surgiu uma organização de captura, escravização e comercialização sofisticada, que deu origem às feitorias, construções situadas na costa africana, onde os negociantes compravam os nativos capturados no interior do continente por intermediários. Esses comerciantes portugueses tinham o interesse, pouco a pouco concretizado, de abrir novos mercados para o negro-mercadoria.

Desse modo, Portugal, Espanha, Itália, as ilhas mediterrâneas produtoras de açúcar e as ilhas atlânticas de domínio português – Madeira, São Tomé, Açores e Cabo Verde – foram amplamente abastecidas pelo novo “produto”, o negro africano escravizado. Era uma espécie de “ensaio” para o que viria a acontecer nas Américas portuguesa e espanhola a partir do século XVI.

Para Luiz Felipe de Alencastro (2000), a colonização portuguesa funda-se no escravismo e dá lugar a um espaço econômico e social bipolar, que englobava uma zona de produção escravista situada na América do Sul e uma zona de reprodução de escravos centrada em Angola. Essas duas partes unidas pelo oceano completavam-se, segundo o autor, num único sistema de exploração colonial cuja singularidade marca profundamente o Brasil dos dias atuais.

 A escravização do indígena

Nos primeiros anos de exploração na América, os portugueses utilizaram-se do trabalho compulsório indígena. De acordo com Boris Fausto (2018), o trabalho compulsório foi um elemento fundamental na empreitada portuguesa na América, ao lado da empresa comercial e do regime de grande propriedade.

Por não haver grande oferta de trabalhadores em condições de emigrar como semidependentes ou assalariados, nem o trabalho assalariado ser conveniente para os fins da colonização, o trabalho escravo apresentou-se como a alternativa mais lucrativa e viável para os colonizadores.


Por Jean-Baptiste Debret

Embora não seja fácil calcular a extensão da escravidão indígena na América portuguesa, não há dúvida de que não se deu em proporção pouco significativa, como parte da historiografia mais clássica defendeu no século passado. Ao contrário, a escravidão indígena foi regulamentada pela Coroa portuguesa e atingiu caráter amplo no espaço e no tempo (PINSKY, 2020, p. 17).

Exemplos da participação da Coroa nesse processo foram as guerras justas, que deveriam ser travadas em legítima defesa contra tribos antropofágicas. Nelas, justificava-se tomar índios como escravos por entender-se que aqueles indivíduos, por seus hábitos de antropofagia, não poderiam ser “salvos” pela catequização. Laima Mesgravis destaca que o apresamento dos indígenas nas primeiras décadas de colonização foi facilitado pelo estado de disputa em que se encontrava a maioria das tribos que habitavam as costas brasileiras, que rivalizavam por territórios de caça e coleta (MESGRAVIS, p. 15).

A antropofagia, conforme defende Florestan Fernandes, era um hábito das tribos tupis, caracterizando-se como um ritual religioso esporádico, que permitia aos indígenas incorporarem as qualidades do guerreiro devorado (idem, ibidem). Tais hábitos foram divulgados na Europa através dos relatos do mercenário Hans Staden, que descrevem o contato do alemão com tupinambás quando foi aprisionado, por quase um ano, na região de Bertioga. Tais escritos inspiraram as gravuras e informações gráficas do geógrafo Théodore de Bry.

Entre os séculos XVI e XVII, as expedições de apresamento dos bandeirantes aprofundaram os objetivos de caça aos indígenas. Segundo Jaime Pinsky, cerca de trezentos mil indígenas foram aprisionados e escravizados nesse primeiro momento da colonização portuguesa na América. Várias formas de colonização dos indígenas ocorreram, como a “administração”, as reduções jesuíticas e o assalariamento. Todas elas foram igualmente humilhantes.

Deslocados de seus ambientes e sujeitos a doenças trazidas pelos europeus, os indígenas foram submetidos a condições de vida e de trabalho degradantes e violentas, o que contribuiu para a grande mortalidade dessa população.

Quando folheamos alguns livros didáticos mais antigos ou lemos algum texto que trata da escravidão no Brasil, uma questão costuma ficar em evidência: por que a mão de obra indígena escrava foi preterida pelos colonizadores? Durante décadas, a historiografia incorreu em equívocos para tentar responder a essa pergunta e o mais cristalizado pelo senso comum é o que defende que indígenas seriam preguiçosos e ineptos ao trabalho por natureza.

Atualmente, boa parte da historiografia assume que a grande causa da preferência pela mão de obra africana escravizada foi o tráfico, dentre outros fatores econômicos e demográficos. Boris Fausto (2018, p. 22), por exemplo, alega que o comércio internacional de escravos, trazidos da costa africana, era um negócio tentador, tanto que acabou se transformando no grande negócio da colônia, fonte potencial de acumulação de riqueza.

Já Luiz Felipe Alencastro vai além desse fator em sua explicação. Para ele, o transporte dos escravos indígenas internamente era um impasse fundamental na comercialização desses “produtos”. Tal “irregularidade no transporte marítimo” entre o norte e sul da costa brasileira se mostrava mais difícil de superar do que percorrer a rota leste-oeste, “rumo aos portos africanos” ALENCASTRO, 2000, p. 126).

Além disso, havia outros impedimentos para a navegação de cabotagem, controlada até 1766, com o objetivo de garantir a dependência entre a colônia e o comércio metropolitano. Essa decisão implicava na proibição dos intercâmbios entre as capitanias, a partir de 1549, o que também visava garantir a dependência da colônia com a metrópole, fomentando o exclusivo comercial.

“Enfim e sobretudo, não existia nenhuma rede mercantil apta a empreitar, de maneira regular e em larga escala, as vendas de índios de uma capitania a outra. Aí reside o problema. Excluídos do negócio atlântico de gêneros tropicais, privilégio dos mercadores ligados às casas metropolitanas, os traficantes de índios não conseguiram exportar os produtos das fazendas, os quais, na ausência de circulação monetária, serviriam de pagamento às compras de escravos nativos efetuadas pelos fazendeiros. Deveriam, portanto, recorrer aos negociantes das praças marítimas para efetuar as exportações. Ora, estes últimos se apresentavam, igualmente, como vendedores de escravos… africanos. Se fosse preciso esboçar uma hierarquia das causas que atrofiaram a formação de um mercado de escravos índios na América portuguesa, eu não hesitaria em situar acima de todos o fator que acabo de apontar” (ALENCASTRO, 2000: 126).

Jaime Pinsky, porém, entende que seja necessário relativizar o alcance da questão do transporte interno levantada por Alencastro, uma vez que, hoje, é sabido que o cativeiro indígena foi um fenômeno que perdurou por séculos no Brasil Colônia, não tendo sido totalmente substituído pela mão de obra de escravos africanos. Durante o século XVII, por exemplo, identifica-se um recrudescimento do processo de apresamento do indígena por conta das dificuldades que o tráfico negreiro enfrentou com a presença holandesa. A questão colocada pelo autor é a seguinte: “por que o negro, se o índio poderia ser escravizado?” (2020, p. 20)

A resposta estaria na fraca densidade demográfica da população indígena; na resistência dos povos indígenas a partir da percepção do interesse dos brancos em escravizá-los; na dizimação dos indígenas por meio da superexploração de sua força de trabalho e na proteção jesuítica, cuja importância é inegável em regiões como Sete Povos de Missões. No entanto, o aspecto mais essencial foi, sem dúvida, o interesse da Coroa e dos traficantes.

“Enquanto a captura do índio era quase um negócio interno da colônia – quando, frequentemente, até o quinto (imposto) devido à Coroa era sonegado –, o comércio ultramarino trazia excelentes dividendos tanto ao governo, quanto aos comerciantes. Assim, governo e jesuítas apoiavam indiretamente os traficantes, estabelecendo limitações à escravidão indígena – em nome de Deus (PINSKY, 2020, p. 20).

A partir de 1750, portanto, incentivou-se a importação de africanos, e a Coroa passou a tentar impedir a escravização de indígenas por meio de leis.

O escravo africano

Estima-se que, entre 1550 e 1855, entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de africanos escravizados, em sua maioria jovens do sexo masculino. O negro foi trazido para a América portuguesa para exercer o papel de força de trabalho compulsório numa estrutura que estava se organizando em função da grande lavoura, cuja racionalidade e eficiência dependia diretamente da mão de obra escrava.

SETH. [Navio negreiro]. [S.l.: s.n.], [1940?]. 1 reprod. fotom., p&b, 14,6 x 20,2 cm.

Os colonizadores tinham conhecimento das habilidades dos negros por sua rentável utilização na atividade açucareira das ilhas do Atlântico. Por fim, muitos escravos provinham de culturas em que os trabalhos com ferro e pecuária eram usuais, de modo que sua capacidade produtiva era superior à dos indígenas. (FAUSTO, 2018, p. 24). Nesse sentido, é válido ressaltar que o negro não veio para o Brasil, mas foi trazido à força. Ou seja, foi privado de sua própria decisão, a despeito de sua vontade e de sua liberdade.

Johann Moritz Rugendas, Public domain, via Wikimedia Commons.

A região de proveniência dos escravos, segundo Fausto, dependeu da organização do tráfico, das condições locais na África e das preferências dos senhores brasileiros. Assim, foi a Costa da Guiné que forneceu o maior número de escravos à América portuguesa no século XVI, por exemplo. Na época, o termo Guiné era usado de forma muito genérica e devia incluir toda a região que vai da embocadura do Rio Senegal até o Rio Orange, no atual Gabão. Os maiores fornecedores eram os núcleos Bissau, Casseu e São Jorge da Mina.


VIGNERON, Pierre Roche. Benguela / Angola / Congo / Monjolo.
Paris [França]: Lith. de G. Engelmann, [1835].
1 grav, pb.

Do século XVII em diante, as regiões mais ao sul da costa africana, como Congo e Angola, tornaram-se os centros exportadores mais importantes, a partir dos portos de Luanda, Benguela e Cabinda. Já no século XVIII, 70% do total de escravos trazidos para o Brasil era composto de angolanos (FAUSTO, 2018, p. 24).

No entanto, uma vez que o porto de origem do escravo não tinha necessariamente relação com a origem dos escravizados, havia uma grande variedade de grupos étnicos e negros trazidos pelos traficantes. A multiplicidade de etnias e clãs era decorrente não apenas do processo de apresamento do negro, mas também do interesse dos senhores em ter escravos de diferentes origens. Isso acarretaria, segundo a perspectiva dos senhores, uma dificuldade de integração da população escrava e, consequentemente, do surgimento de qualquer espécie de organização conduzida por eles, o que, como veremos adiante, não se concretizaria.

O transporte dos escravos entre a África e a América era um dos traços mais cruéis do sistema escravista e tudo começava ainda em terra, nas já citadas feitorias. Esses abrigos de madeira ou pedra foram construídos junto aos ancoradouros para que os cativos capturados aguardassem a chegada dos navios. Desse modo, os capitães das embarcações não precisavam esperar a chegada dos grupos de cativos e não perdiam tempo de viagem.

A “logística” era simples e confirmava a violência do cativeiro: quando o navio chegava ao porto, os escravos eram embarcados de acordo com a ordem de chegada na feitoria. Procurava-se reduzir ao máximo o tempo de estada dos cativos na feitoria a fim de evitar rebeliões. Os traficantes acreditavam que, quanto menor o tempo de convivência entre os cativos, menor a possibilidade de criarem laços e identificação. “Não conseguindo interagir com os companheiros de cativeiro, dificilmente organizava rebeliões. Quando muito manifestava-se isoladamente e seu ato, sem maiores repercussões, era prontamente reprimido pelos europeus” (PINSKY, 2020, p. 36).

Ao embarcar, o cativo era batizado pelo sacerdote e, a partir dali, deveria esquecer as características e afetividades que o ligavam à sua origem. Durante a viagem, o processo de destruição identitária e desumanização prosseguia com a marcação a ferro no ombro, na coxa ou no peito dos cativos, que permaneciam presos por correntes de ferro. Apesar dos maus tratos, a lei portuguesa tentava manter a mercadoria viva durante o trajeto. “Exigia que ao escravo fossem fornecidas três refeições diárias, dois litros e meio de água e que sofresse revisão médica” (Ibidem).

Mesmo assim, a fome, a sujeira, o desconforto e a morte acompanhavam os cativos ao longo da travessia. O número de escravos num único navio era o máximo possível, chegando a quinhentos numa caravela e setecentos num navio maior. A viagem demorava de trinta e cinco a cinquenta dias em condições normais. Em condições adversas, até seis meses. Espremidos uns contra os outros, homens, mulheres e crianças eram obrigados a realizar suas necessidades fisiológicas no mesmo lugar onde dormiam e eram alimentados.

Obviamente, esse cotidiano insalubre acarretava doenças para vários cativos, que acabavam morrendo antes do fim da viagem, tendo seus corpos lançados ao mar. Acredita-se que pelo menos quatrocentos mil africanos morreram nas viagens entre a África e o Brasil. Segundo Alencastro (2000), 40% dos africanos morriam nos primeiros seis meses subsequentes ao seu apresamento. Cerca de 12% deles faleciam durante o mês de aprisionamento nos portos aguardando transporte, 9% durante a travessia e metade dos que chegavam morriam nos primeiros quatro anos de trabalhos forçados. Assim, dos mais de 8 milhões de africanos escravizados, somente 2 milhões conseguiram sobreviver durante mais de cinco anos em média.

O desembarque dos africanos dava-se assim que o navio chegava aos portos da colônia. Destacam-se as cidades de Recife e Bahia, áreas de grande demanda de escravos entre os séculos XVI e XVII por conta da atividade canavieira. Mais tarde, os escravizados teriam outros destinos mais ao sul e ao interior da colônia, como o porto do Rio de Janeiro, principalmente durante o auge da mineração. O tráfico podia se desenvolver por importação direta dos senhores de terras ou por meio de um negociante que financiava e organizava a importação. A venda ocorria já no porto de desembarque por negociação direta ou por leilões.

A presença dos tratantes, ou seja, negociantes intermediários, só iria se afirmar com o desenvolvimento da atividade aurífera em Minas Gerais. A demanda de escravos naquela região vai alterar significativamente o tráfico, não só por deslocar a presença da mão de obra africana para além das lavouras de cana e dos engenhos, mas também por provocar um crescimento na quantidade de navios negreiros que atracavam nos portos da colônia.

Dessa forma, os traficantes foram se desvinculando cada vez mais dos proprietários de terras e engenhos, por não precisarem mais de seu financiamento. O tráfico passou então a ser, a partir da virada do século XVII para o século XVIII, uma atividade em si, explicada pela enorme demanda de escravos na América portuguesa e pela necessidade de acumulação de riquezas do sistema colonial.

“Para o escravo, estas alterações representavam, concretamente, passar por várias mãos antes de chegar ao seu destino final. Seu preço subiu no mercado interno, por conta da maior demanda e da especulação dela decorrente. Isto vai provocar o desenvolvimento do tráfico interno, resultado também do fato de o investimento no escravo deixar de ser rentável em certas atividades” (PINSKY, 2020, p. 42).

No século XIX, a grande novidade da economia brasileira foi o surgimento da produção de café para a exportação. Foi no vale do Rio Paraíba, nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, que se reuniram as condições para a sua primeira grande expansão em níveis comerciais.

Cabe destacar que a região, além de ter terra virgem e clima favorável, ficava próxima ao porto do Rio de Janeiro, o que facilitava o escoamento da mercadoria, apesar das dificuldades do transporte, que seria bastante precário até o desenvolvimento das primeiras ferrovias, na segunda metade do século XIX. Assim, a implantação das fazendas de café vai se dar pela forma tradicional de grande propriedade, com o emprego da já bem-sucedida força de trabalho escrava.

Durante quase todo o período monárquico, o cultivo do café foi feito com técnicas bastante simples, sendo os instrumentos de trabalho básicos, e quase exclusivos, a enxada, a foice e a mão de obra escravizada. Uma frase comum nos círculos dominantes da primeira metade do século XIX era: “O Brasil é o café, e o café é o negro”. Apesar de controversa, não há dúvida de que, nesse período, boa parte da expansão do tráfico atlântico, e depois interno, se deveu à necessidade da lavoura de café.

“Do ponto de vista socioeconômico, o complexo cafeeiro abrangia um leque de atividades que deslocou definitivamente o polo dinâmico do país para o centro-sul. Em função do café, aparelharam-se portos, criaram-se novos mecanismos de crédito, empregos, revolucionaram-se os transportes. Isso não ocorreu da noite para o dia. Houve um processo relativamente longo de decadência do nordeste e de fortalecimento do centro-sul, que se tornou irreversível por volta de 1870” (FAUSTO, 2018, p. 103).

No decênio da independência, o tráfico aumentou com relação ao período anterior. A concentração de escravos pelos portos ao sul da Bahia cresceu consideravelmente; a grande maioria dos cativos sendo enviada para as lavouras do Vale do Paraíba ou ficando na Corte, no Rio de Janeiro. A discussão sobre a abolição da escravatura já rondava as pautas de alguns intelectuais que participaram da independência, influenciados, principalmente, pelo pensamento liberal. No entanto, o processo desencadeado em 1822 manteve intacto um dos principais alicerces do antigo sistema colonial, a escravidão.

Essa mão de obra era ostensivamente utilizada na corte imperial. Mas, apesar do crescimento no número de africanos entre os nobres portugueses, a monarquia começaria a sofrer fortes pressões internas e externas para pôr fim ao sistema escravista.

Em 1826, a Inglaterra impôs ao Brasil um tratado cuja ratificação declarou ilegal o tráfico de pessoas escravizadas. Os dispositivos da lei, sancionada por Dom Pedro II em 1831, determinavam que “todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres”. Evidentemente, a determinação não foi respeitada, e foi a primeira lei “para inglês ver”.

Diante da inércia dos brasileiros em resolver a questão, a Inglaterra apreendeu diversos navios que transportavam escravos. E, em 1845, o Parlamento inglês aprovou a Lei Bill Aberdeen, autorizando a marinha britânica a tratar os navios negreiros como navios piratas, com direito a prendê-los e puni-los.

Em 1848, subiu ao poder, no Brasil, um gabinete conservador, presidido pelo Marquês de Monte Alegre. Entretanto, para o ministério da Justiça, foi indicado o filho de um juiz luso-angolano, Eusébio de Queiroz. Partiu, então, do ministério um projeto de lei ao Parlamento, para que medidas mais eficazes contra o tráfico fossem tomadas, reforçando a lei de 1831. O projeto converteu-se em lei em 1850, reconhecendo que o tráfico equivalia à pirataria. Dessa vez, a lei foi eficaz, fazendo com que o tráfico atlântico praticamente desaparecesse a partir de 1851.

Com a tomada de medidas efetivas de combate ao tráfico, o fim da escravidão no Brasil parecia questão de tempo. Mas, enquanto se debatia o que deveria ser feito com os cativos e os proprietários de escravos para que a abolição se desse sem grandes prejuízos, o uso da força de trabalho escravo se mantinha. Após 1850, o suprimento dos cativos se deu por meio do tráfico interprovincial. Os traficantes percorriam as províncias convencendo os fazendeiros empobrecidos a venderem seus escravos, que, assim, eram transferidos de uma região para outra, por mar ou por terra, das zonas açucareiras do nordeste até as regiões cafeeiras do centro-sul. Estima-se que, entre 1850 e 1888, de 100 a 200 mil cativos foram comercializados internamente.

De 1874 em diante, identifica-se um declínio significativo da população escrava em todo o país, tendência que se acentua a partir de 1885. Esse decréscimo foi muito mais nítido no Nordeste do que no centro-sul: 19% contra 31%.

 Vida no cativeiro e formas de resistência

O cotidiano dos escravos, argumenta Jaime Pinsky, não era fruto de suas próprias escolhas, mas das tarefas que lhe eram atribuídas. “Isto acontecia pela sua contraditória condição (condição imposta, evidentemente) de humano e “de coisa” – ter vontade própria e não poder executá-la, tendo de executar, por outro lado, vontades que não eram suas, mas do senhor. O dia a dia do escravo refletia sua condição própria de existência e variava bastante, dependendo das especificidades na agroindústria canavieira, na agricultura cafeeira, na atividade aurífera ou em atividades domésticas” (PINSKY, 2020, p. 74).


ZWINGER, Gustave Phillipe.
Capitão do matto.
Paris [França]: Lith. de G. Engelmann, [1835].
1 grav, pb.

É certo, como afirma Pinsky, que havia para as pessoas escravizadas pouca margem para a realização de suas próprias vontades, tanto no período colonial, quanto no Brasil monárquico. É preciso ressaltar, porém, que, ao contrário do que se defendeu por muito tempo, novas abordagens na historiografia brasileira apontam o papel ativo dos escravos na construção de fontes comunitárias de resistência e de um estilo de vida pautado em uma herança cultural compartilhada, de origem centro-africana.


JULIÃO, Carlos. [Escravo examinado por dois feitores].
[S.l.: s.n.].
1 des, aquarela, col, 45,5 x 35.

É o que apontam, por exemplo, as pesquisas do historiador Robert W. Slenes, reveladas na obra “Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava” (SLENES, 1999). Nessa obra, o autor busca discutir a família escrava no Brasil, à luz da cultura africana, a partir do estudo das famílias escravas da região de Campinas no século XIX.

Segundo o historiador, nas regiões de grande lavoura do Rio de Janeiro e de São Paulo, e nas áreas agropecuárias de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, a população escrava era quase literalmente “africana”. A grande maioria dos escravos veio de sociedades falantes da língua bantu, principalmente da atual Angola e do Congo-Norte. E uma característica comum a todas as sociedades bantu é se estruturarem em torno da família como linhagem, ou seja, como um grupo de parentesco que traça sua origem a partir de ancestrais comuns.

Em vista disso, é possível supor que, ao contrário do que se acreditava, apesar da separação radical de suas sociedades de origem, os africanos trazidos para o Sudeste do Brasil lutaram com determinação para organizar suas vidas de acordo com os costumes da família-linhagem. Nesse sentido, mesmo forçados a migrar para o Brasil, procuraram agir na sua nova terra da mesma maneira que os integrantes dos grupos bantu que deixavam voluntariamente suas aldeias de origem para estabelecer novos povoados dentro da África Central e Austral (SLENES, 1999, p. 155).

O caso estudado por Slenes comprova que, por mais que os senhores buscassem tornar difícil a integração entre africanos escravizados e o estabelecimento de práticas e afetividades entre eles, as resistências negras incorreram em negociações. Os senhores muitas vezes eram obrigados a ceder em relação aos costumes e práticas sociais dos cativos, caso não quisessem perdê-los nos postos de trabalho, por tristeza ou melancolia. A ideia de fazer com que os escravos não criassem laços identitários entre si e, assim, não se organizassem e se rebelassem, teve pouca efetividade na prática. Prova disso foram os diversos levantes que, especialmente a partir do século XIX, se instalaram na vida cotidiana do Recôncavo Baiano e da cidade de Salvador.

A revolta mais significativa ficou conhecida como o Levante dos Malês e ocorreu em 1835, quando centenas de negros africanos, escravos e libertos adeptos do islamismo, promoveram uma insurreição em Salvador. Também sabemos que, já no período colonial, não eram raras as fugas para os quilombos, verdadeiras comunidades que possuíam estruturas próprias de poder, de administração e de trabalho. O caso mais conhecido e bem-sucedido deles foi o Quilombo dos Palmares, no atual estado do Alagoas, que surgiu em torno de 1580, durou mais de um século e contou com cerca de 20 mil habitantes.

O fim do sistema escravista

Até a assinatura da Lei Áurea, em 1888, e a extinção definitiva da escravidão, o fim do sistema escravista foi feito por etapas. A maior controvérsia quanto às medidas legais ocorreu em 1871, com a Lei do Ventre Livre, que declarava livres os filhos de mulheres escravas nascidos após a lei. Estes ficariam em poder dos senhores de suas mães até os 8 anos de idade. A partir dessa idade, os senhores poderiam optar por uma indenização ou utilizar os serviços do menor até os 21 anos.

De acordo com Boris Fausto (2018), as posições dos deputados em torno do projeto de um gabinete conservador, presidido pelo Visconde do Rio Branco, são bastante reveladoras. Os representantes do nordeste votaram maciçamente na proposta, ao passo que os do centro-sul foram majoritariamente contrários, fato que provavelmente se deu em função dos efeitos do tráfico interprovincial, que diminuiu a dependência do nordeste em relação à mão de obra escrava.

Durante a década de 1880, o movimento abolicionista ganhou cada vez mais força, com a aparição de associações, jornais e com o avanço da propaganda, que angariou algumas figuras importantes para a causa: Joaquim Nabuco, parlamentar e escritor, oriundo de uma das mais importantes famílias latifundiárias de Pernambuco; José do Patrocínio, mestiço proprietário da Gazeta da Tarde, importante periódico abolicionista da Corte; André Rebouças, engenheiro e professor da Escola Politécnica; Luís Gama, advogado abolicionista, que havia sido vendido ilegalmente como escravo.

Em 1884, a província do Ceará declarou, por conta própria, extinta a escravidão. No ano seguinte, foi aprovada a Lei dos Sexagenários (Lei Saraiva-Cotegipe), que concedia liberdade aos cativos com mais de 60 anos e estabelecia normas para a libertação gradual de todos os escravos mediante indenização, a fim de barrar o abolicionismo radical. Em 1888, com a fuga em massa dos escravos e a desorganização total do trabalho nas fazendas paulistas, apegavam-se à escravidão somente os representantes das velhas zonas cafeeiras do Vale do Paraíba. Assim, no dia 13 de maio daquele ano, foi sancionada, pela regente Princesa Isabel, a proposta da abolição da escravidão sem restrições do presidente do Conselho de Ministros do Império, João Alfredo Correia de Oliveira.

O legado da escravidão

A lei de 13 de maio veio dar o golpe de morte numa economia há muito tempo em crise. Com a Abolição, houve um deslocamento do poder político, acelerando a decadência da oligarquia tradicional, que deteve o poder durante o Império e se identificava com a Monarquia. Os fundamentos sociais do sistema monárquico foram abalados tão fortemente que, no ano seguinte, a República viria a ser declarada.

Apesar da ampla desorganização do trabalho e da decadência rápida de certas áreas, o ritmo de desenvolvimento econômico do país foi acelerado. As novas oportunidades foram aproveitadas pelos imigrantes, especialmente os europeus. Contudo, os ex-escravos, marcados pelo legado da escravidão e com a exclusão social, não conseguiram se inserir no mercado de trabalho, salvo raras exceções. Enquanto alguns se dedicavam a trabalhos subalternos nos núcleos urbanos, outros abandonaram as fazendas e dedicaram-se à cultura de subsistência, sempre desprovidos de políticas públicas efetivas que pudessem inseri-los efetivamente na lógica do trabalho assalariado e na vida em sociedade.

Segundo Emília Viotti da Costa (2010), como a Abolição resultava mais do desejo de livrar o país dos inconvenientes da escravidão do que de propriamente emancipar o escravo, conferindo-lhes, portanto, direitos e cidadania, as camadas sociais dominantes não se ocuparam da inserção do negro na sociedade de classes. Suas dificuldades de ajustamento às novas condições foram encaradas como prova da incapacidade do negro e da sua inferioridade racial. Tal entendimento foi aprofundado com a circulação e influência das teorias raciais que, no final do século XIX, justificaram o imperialismo na África e na Ásia.

As mazelas, a violência e os traumas de mais de três séculos de escravidão em terras brasileiras persistem até os dias atuais, quando ainda vivenciamos a marginalização de pessoas pretas e pardas na sociedade. Se a abolição representou uma etapa importante do processo de liquidação da economia colonial do país, não significou, entretanto, uma ruptura definitiva com o passado escravocrata (COSTA, 2010: 344).

Esses são traços de um problema histórico que, atualmente, se desdobra na exclusão social e racial, no racismo estrutural e no preconceito contra negros e negras que tentam recuperar suas identidades, ocupando os espaços antes negados aos seus antepassados africanos. A abolição da escravatura não significou a abolição do racismo e das lutas de classe pautadas pela cor e pelo passado dos negros e descendentes de escravos. São problemas que só serão resolvidos com políticas públicas efetivas e, nesse quesito, ainda temos muitas contas a acertar com o passado.

Referências bibliográficas:

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

MESGRAVIS, Laima. História do Brasil Colônia. Editora Contexto, 2019.

PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Editora Contexto: 2020.

SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava. Campinas, Editora Unicamp: 2012.