José Celso de Macedo Soares Guimarães – “O Maior Problema é o Privilégio das Estatais”

Publicada originalmente na Revista Transporte Moderno n. 164 – setembro de 1977

Da história da marinha mercante brasileira, pode-se dizer, sem medo de errar, que teve duas fases bem distintas – antes e depois de José Celso de La-Roque de Macedo Soares Guimarães. “Não concordo com o José Celso em muita coisa. Mas, sou obrigado a reconhecer que, se não fosse seu esforço hoje não existiria a marinha mercante nacional”, confessa um dos muitos adversários do combativo almirante e engenheiro naval. “Ele é o pai da nossa moderna marinha mercante”.

De fato, quando assumiu, em 1967, a presidência da antiga Comissão de Marinha Mercante, Macedo Soares deparou-se com um panorama desolador. “A CMM era um órgão flácido e obsoleto, sem nenhum poder de decisão e execução”, relembra o Almirante. Pior do que isso: o Lloyd, único armador brasileiro no tráfego internacional não conseguia captar nem 10% dos fretes gerados pelo comércio exterior brasileiro. Em 1966, por exemplo, a receita do Lloyd foi de apenas US$ 38 milhões, num bolo de US$ 400 milhões. Graças a acordos altamente prejudiciais aos interesses brasileiros, os navios nacionais não podiam levar ou trazer carga para a Escandinávia. No comércio Brasil-Europa, a participação Brasileira era de apenas 10%. E, no tráfego Brasil-EUA, os navios noruegueses, alemães e holandeses tinham maior participação que os brasileiros e americanos.

Homem acostumado à luta, mesmo no sentido literal da palavra – participou da Segunda Guerra Mundial em operações de comboio, embarcado no contratorpedeiro “Mariz e Barros” Macedo Soares não se intimidou. Conduziu com energia e, até mesmo, com intransigência, a operação que ficaria conhecida como “batalha dos fretes”.

“A batalha outra coisa não foi do que a luta contra os ‘poderes marítimos tradicionais’, entrincheirados nas então existentes conferências de fretes”, relata o jornalista José Narciso, assessor de imprensa da Associação dos Armadores Brasileiros de Longo Curso, em sua “História da marinha mercante brasileira”.

Nesta “guerra”, a maior arma brasileira foi a resolução nº 2995 da CMM. Ousado a ponto de desafiar o secular princípio “liberdade dos mares”, em vigor até então, o documento estabelecia a predominância dos armadores nacionais no tráfego gerado pelo comércio entre o Brasil e outros países. Em outras palavras, a participação da terceira-bandeira não seria mais livre, mas, sim, limitada por acordos firmados entre os armadores brasileiros nas Conferências de Fretes” e aprovados pela CMM. Ficava reservado aos armadores de bandeira brasileira o transporte de determinadas cargas, principalmente as importadas pelo governo. E, para cada linha autorizada pelo Brasil a uma empresa estrangeira, deveria corresponder uma linha concedida pelo país de origem a uma empresa brasileira.

Naturalmente, que de nada adiantaria desafiar as tradicionais potências marítimas, se o Brasil não dispusesse de navios e armadores bem-organizados. Destes aspectos também não se descuidou Macedo Soares. A CMM, depois transformada em Sunaman, tratou de colocar em prática um ambicioso Plano de Construção Naval.

Ao mesmo tempo, o governo cuidava de abrir a navegação de longo curso às empresas privadas. Operando em associação com o Lloyd (na época, o único armador com experiência internacional), as companhias escolhidas constituem hoje a espinha-dorsal do transporte marítimo brasileiro, responsável, já em 1973, pela movimentação de 45,4% das cargas de importação e exportação.

De volta às atividades privadas, Macedo Soares tem dividido seu tempo entre os mais variados afazeres. De diretor de empresas armadoras e estaleiros a presidente de uma editora. Não perdeu, contudo, a antiga combatividade. Ela está presente em seus livros “Marinha mercante do Brasil (uma opinião)”, editado em 1968, “Transporte no Brasil, suas grandes metas e “Temos pressa”, mais recentes (1976). Ou nos ácidos artigos que, periodicamente, dispara com invulgar precisão contra os erros da nossa política de transportes e a estatização da economia.

Uma de suas entrevistas valeu-lhe até mesmo um rumoroso processo no qual acabou, recentemente, absolvido pelo STM. É este homem controvertido, cujos méritos, contudo, nem mesmo os mais irascíveis adversários se atrevem a negar, que fala a TM sobre os problemas do transporte marítimo brasileiro.

TM – Como o senhor vê a presença do Estado no controle das grandes companhias brasileiras de navegação, como a Fronape, Docenave e Lloyd?

MS – Vejo este fato como o principal problema da marinha mercante brasileira. A presença estatal significa que, mais cedo ou mais tarde, estas empresas vão abrir o leque, deixando os armadores privados em situação calamitosa. A Petrobrás, por exemplo, já detém, pela lei 2004, que a criou, o monopólio do transporte de granéis líquidos, enquanto a Vale do Rio Doce está no setor de granéis sólidos. Nenhuma dessas duas empresas tem nada a ver com navegação. Estão nos mares apenas devido à pressão estatizante, que faz questão de ampliar as empresas do governo até as raias do absurdo. O fato de serem estatais significa que podem comprar quantos navios quiserem sem correrem nenhum risco. Se não pagarem, a Sunamam não terá condições de fazer nada.

TM – Qual a alternativa, então?

MS – É preciso acabar com os privilégios das estatais. Eu defendo a aplicação do mesmo critério usado em 1967, em relação ao Lloyd. Isto é, a divisão meio-a-meio, das cargas. E os armadores privados deveriam ter permissão para entrar em qualquer tipo de carga.

TM – Mas, parece que está acontecendo justamente o contrário. Enquanto o Lloyd conseguiu licença para entrar no tráfego de granéis, a Docenave já tem concessão para operar na cabotagem.

MS – A licença dada ao Lloyd para operar granéis não só aumenta desnecessariamente a esfera de sua ação, como cria uma competição entre as próprias estatais. O melhor seria o Lloyd repassar os graneleiros que adquiriu aos particulares ou à Docenave.

Mais do que isso, sugerimos o congelamento da frota do Lloyd, pois as empresas particulares são muito mais eficientes. Basta comparar os lucros do Lloyd com os da Aliança. Com uma linha cinco vezes menor, o armador particular teve lucro praticamente igual ao do Lloyd. Quanto à concessão da Docenave para operar na cabotagem, deveria ser simplesmente revogada.

TM – Se o governo proceder assim, a construção naval não será prejudicada?

MS – O governo precisa entender, de uma vez por todas, que a Sunamam existe para resolver os problemas do armador brasileiro e, principalmente, da marinha mercante brasileira, e não apenas os da construção naval. Mas, o grande problema é que a Sunamam está entregue a homens que, na maioria das vezes, entendem pouco de marinha mercante. Preferem, por isso, ater-se à construção de navios, tarefa cuja execução é muito mais fácil. Os erros que eles vêm cometendo são tantos que saltam aos olhos.

TM – Por exemplo?

MS – Em 1974, a rigidez e a falta de conhecimento dos atuais dirigentes da

Sunamam impediram que os armadores nacionais comprassem navios no exterior com mais de 50% de desconto. Eles foram obrigados a fazer suas encomendas aos estaleiros nacionais, dentro do II PCN, por preços incrivelmente altos.

TM – Quer dizer que o senhor defende a importação de navios?

MS – É vantajoso deixar os armadores comprarem lá fora. Com isso, eles se tornam mais competitivos em termos internacionais. Mas, o que existe é uma solene preocupação com a indústria de construção, em prejuízo dos armadores.

TM – Fala-se em um III PCN. O senhor acha a ideia viável?

MS – O II PCN ainda foi suportável para o armador brasileiro. Mas, ele, definitivamente, não aguenta um III Plano. A hora é para se partir para a construção de embarcações especiais e navios para a marinha de guerra. Os estaleiros precisam sair da cômoda proteção do manto do governo e aprender a andar sozinhos.

TM – Como o senhor vê nossa administração portuária?

MS – Estamos um cinquenta anos atrasados. E vai ser difícil tirar o atraso porque os homens que estão cuidando disso atuam dentro de um organograma superado.

TM – O senhor pode explicar melhor?

MS – Atualmente, a primeira providência para melhorar os portos, seria a criação da Superintendência de Portos e Marinha Mercante. Este órgão absorveria todas as atribuições da Portobrás e da Sunamam.

TM – Isso é realmente necessário?

MS – Diria mesmo que é indispensável. Há muito que as políticas de marinha mercante e dos portos não se desenvolvem de maneira harmoniosa. Devido às suas numerosas tarefas, é muito difícil para o próprio ministro ocupar-se da coordenação. Os grandes problemas do setor exigem a coordenação de um órgão específico, dirigido por um especialista. A esta nova superintendência, ficariam também subordinados o Lloyd Brasileiro e a Renave.

TM – Qual a sua opinião sobre nossos portos?

MS – Só se pode dizer que são verdadeiros museus. Um porto moderno é coisa bem diferente do que hoje encontramos na maioria dos atracadouros nacionais. A ausência quase total do chamado retroporto, isto é, a falta de pátios ferroviários e rodoviários, de armazéns gerais, de estacionamentos, enfim de uma infraestrutura que complete o porto propriamente dito, torna todos eles obsoletos, obrigando os navios a passarem 2/3 do seu tempo no porto e apenas 1/3 navegando. A maioria dos portos brasileiros não tem calado para receber grandes navios e sua localização já levou um diretor geral de Portos a afirmar que todos eles estão em local errado ou foram mal concebidos. E se eles não forem totalmente reformulados, de nada adiantarão mirabolantes Planos de Construção Naval nem incentivos à cabotagem.

TM – Mas, não existem algumas exceções?

MS – Temos alguns terminais modernos, como os da Petrobrás (São Sebastião, Rio de Janeiro e Tamandaí); os do Vale e da MBR (Tubarão e Sepetiba). Em fase de construção, há o porto de Aratu, que, no nosso entender, deve ser logo ampliado para substituir o obsoleto porto de Salvador. Mas, o que existe de mais importante em matéria de portos no Brasil ainda não foi feito. É o caso dos portos de São Sebastião e Sepetiba, que ainda não foram iniciados, não por falta de dinheiro, mas de uma visão mais progressista.

TM – Quer dizer que o senhor, tal como o engenheiro Celestino Rodrigues, defende a construção de um superporto em São Sebastião?

MS – Durante muitos anos, vem sendo travada uma polêmica estéril entre defensores e adversários da construção de um porto moderno, capaz de atender às necessidades do comércio exterior da região de São Paulo. Os adversários políticos da ideia alegam que seria mais fácil e mais barato fazer melhoramentos no porto de Santos. Mas, eles fazem questão de esquecer – ou melhor, omitir – o fato de Santos estar encravado na cidade e não ter espaço para um retroporto. Além disso, sua profundidade (calado) deixa muito a desejar.

TM – Então a alternativa seria mesmo São Sebastião?

MS – Não podemos ficar na dependência de Santos. Precisamos construir logo um grande porto, que possa receber navios com capacidade superior a 100 000 tpb, sem necessidade de dragagem permanente. São Sebastião, além de ter a profundidade necessária (cerca de 30 m) está abrigado dos ventos e possui boas condições de acesso e manobrabilidade para os navios. E, na verdade, o único local que atende a todas essas condições. E tem a vantagem adicional de permitir a implantação de um grande centro de redespacho para servir a toda a costa do Atlântico Sul.

TM – Em termos econômicos, a iniciativa é viável?

MS – Os estudos da secretaria de Transportes do Estado de São Paulo provam a viabilidade do porto, inclusive em termos de ligação ferroviária (existe uma planejada para levar granéis num sentido e trazer carga geral no outro, além de transportar contêineres). E o escoamento rodoviário seria garantido pela Rio-Santos. Futuramente, haveria uma rodovia ligando Mogi das Cruzes a São Paulo, com projeto já aprovado pelo DNER.

TM – Quer dizer que São Sebastião é mesmo a solução?

MS – Segundo o relatório final da Brasconsult, consultoria que fez o estudo sobre o porto de São Sebastião, a situação pode ser assim resumida: “O porto é o tipo da obra que poucas nações estão em condições de poder efetivar, pelo fato de as condições (sic) naturais ali existentes se apresentarem como ímpares. Os países que não possuem vantagens naturais desse tipo estão contemplados com projetos caríssimos de ilhas artificiais (como no caso do terminal de Delaware) a fim de se colocarem a par das exigências do moderno transporte marítimo internacional. No caso de São Sebastião, os investimentos são relativamente baixos, quando comparados com os benefícios alcançados. Não devemos, portanto, deixar para mais tarde uma obra que, se feita hoje, poderá ter sensíveis efeitos no ritmo de desenvolvimento do país. Não se deve desperdiçar uma dádiva da natureza, deixando de aproveitá-la no momento certo.” E isto não são palavras minhas. Se uma consultoria dá este parecer, não conseguimos entender por que não se constrói.

TM – Sepetiba estaria para o Rio assim como São Sebastião está para São Paulo?

MS – Realmente, Sepetiba é outro porto muito bem situado, onde já funciona o terminal de embarque da MBR. que permite receber navios de até 100 000 tpb. Nas proximidades da Ilha dos Martins, temos uma profundidade de 15 m, onde já está projetado o cais de recebimento de carvão para a Cosigua. Em nossa opinião, deveriam cessar todos os investimentos no atual porto do Rio de Janeiro, deslocando-os para a área de Sepetiba, que será, juntamente com São Sebastião, um dos polos vitais de escoamento das nossas exportações.

TM – Mas, os dois não estão muito próximos um do outro?

MS – Existe a argumentação de que não se deve fazer grandes investimentos em dois portos próximos. Mas. lembramos que, nos países desenvolvidos, isto é uma constante. Ainda mais quando servem duas regiões diferentes.

TM – Pelo que se sabe, os problemas não são apenas de infraestrutura. Falta também uma legislação adequada.

MS – Precisamos providenciar imediatamente a modificação e atualização de toda a legislação portuária existente. Não só quanto aos trabalhadores de terra (os portuários), como também na estiva e capatazia.

TM – Mas, depois da Revolução, a situação não mudou bastante?

MS – Diria que conseguimos apagar a fogueira, mas ainda não conseguimos debelar completamente o incêndio. As dificuldades são muitas e o governo não tem condições de fazer valer o Decreto-Lei n° 5. Este decreto estabelece que os serviços de estiva devem ser feitos por entidades estivadoras. Resultado: o Sindicato continua sendo patrão e empregado ao mesmo tempo com pleno domínio e poderes sobre todos os portos nacionais.


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