As marinhas militares do mundo

Em principio do corrente anno, saiu á publico nos Estados-Unidos uma segunda edição, mais correcta e augmentada, do livro de M. King, titulado – Os navios de Guerra e as marinhas do mundo. *

De todos os livros que se têm occupado com similhante assumpto é esse, sem duvida, o mais completo, e digno de nota, por ser o que melhor condensa todos os dados relativos ás marinhas do mundo, seu material, recursos navaes e organisação em geral.

Na primeira parte do livro se contém a descripção succinta, feita paiz por paiz, de todos os navios de guerra, já n’agua ou ainda em construcção; em seguida passa-se em revista a artilharia naval em suas mais recentes modificações, bem como os melhoramentos realisados no modo de armar e no encouraçamento dos modernos navios de combate; por ultimo, estuda-se em capitulos separados os mechanismos propulsôres com seus complementos indispensaveis, e a arma moderna, o torpêdo, em todos os seus modelos e variados modos de applicação. E, ainda, como para completar o quadro de tão consideravel massa de informações, são apontados os recursos navaes de cada uma das potencias maritimas, seus arsenaes e outros estabelecimentos do mesmo genero, a força do seu pessoal e as bases em geral do respectivo systema de administração no tocante á marinha.

Pouco ha que reprochar ou corrigir nesse livro verdadeiramente precioso para todo official-de-marinha ; os senões, que nelle possa notar-se, são de pouca valia, e devem antes ser attribuidos á difficuldade, aliás natural, de colher dados exactos sobre tantos e tão variados assumptos.

Deduz-se da leitura do livro de Mr. King, que todas as marinhas militares seguem hoje um plano mais ou menos uniforme na formação de seu material fluctuante, embora vario nos typos de navios e outros pontos de detalhe. Esse material compõe-se invariavelmente: de um lado, de encouraçados de diversos portes, e que constituem os verdadeiros navios de combate da actualidade; do outro, de cruzadores não encouraçados, canhoneiras e embarcações porta-torpêdos. As primeiras se subdividem em duas classes distinctas: os encouraçados de alto-bordo ou entendidos como proprios para operar no mar largo; e os navios de menor calado, mais adequados á defeza do littoral ou ás operações em estuarios ou canaes de pouco fundo.

As grandes potencias navaes, essas que têm interesses a proteger em diversos pontos do globo, sentem-se forçadas a prover suas esquadras com encouraçados das duas classes mencionadas, como meio de ataque e de defeza ao mesmo tempo; as outras nações maritimas, contentam-se no geral com possuir navios da segunda classe, menos custósos e mais applicaveis á propria defensão. – Mas, tanto umas como outras, todas se disputam á porfia os typos mais acabados dos navios de combate.

O que chama-se a força de um desses navios é hoje uma questão complexa, e constitue o problema mais complicado que procura resolver a construcção naval. – Pela expressão- força- deve entender-se o conjuncto de todas as qualidades offensivas e defensivas do navio. – No calibre e disposições da artilharia, na energia do ariete, e nos preparos para uso de torpêdos, residem os recursos para o ataque; a couraça e as disposições do casco constituem os elementos defensivos por excellencia. A velocidade tem dual merito: tanto serve para agressão como para a defesa.

Devido ao progresso das machinas a vapor, obtem-se hoje para os grandes navios velocidades de 15 ou 16 milhas por hora, e mais; com o aperfeiçoamento dos processos metallurgicos, produz-se canhões de 100 e mais toneladas, ao lado de chapas de couraça de 24, 30 e 36 pollegadas de espessura. E, como, si tudo isso não bastára para complicar as condições da guerra maritima, o desenvolvimento das artes mechanicas, reunido ás descobertas da chimica applicada á pyrotechnia militar, veio dar nova e subida importancia ao torpêdo como arma de combate.

No traçado e construccção dos novos navios tem sido preciso attender a tão multiplos quão complicados requisitos. Assim é tambem que a sciencia da construcão naval tem conseguido realisar adiantamento incommensuravel no decurso destes ultimos annos. A couraça deixou de revestir as obras mortas dos navios para concentrar-se apenas, mais espessa é verdade, em volta dos pontos mais vitaes; a artilharia, si perdeu no numero de boccas de fogo, ganhou no calibre, na força viva de seus projectis e nos apparelhos para manejá-la; em summa, os cascos foram feitos duplos e o fundo dos navios repartido em compartimentos á prova d’agua para compensar a falta de couraça nas obras vivas, neutralisar tanto quanto possível os terriveis effeitos, nessa parte, de um golpe de ariete ou de um ataque com o torpêdo. – As modificações desceram igualmente até os detalhes. – Nos primeiros dias dos navios revestidos de chapas de ferro a bateria parecia ser a disposição mais vantajósa do encouraçado. de alto-bordo, e a torre gyratoria, o arranjo mais util para o guarda costa ou para o encouraçado de rio. – A diminuição forçada do numero de canhões pelo augmento do calibre e pêso destes transformou entretanto as baterias ás méras proporções de um reducto ou casamata; e, hoje, os constructores e profisssionaes parecem d’accôrdo, si não quanto ao abandono completo da casamata pela torre, ao menos em combinar nos mesmos encouraçados de alto-bordo a torre com o reducto, dispondo neste os grossos canhões e n’aquella apenas as peças de calibre inferior.

Com respeito aos navios cruzadôres tem sido objecto de especial attenção o armamento e a subdivisão do fundo no maior numero possivel de compartimentos á prova d’agua. No tocante ao primeiro ponto os homens technicos divergem ainda quanto ao calibre e numero das boccas de fogo. Acreditam muitos nas vantagens de um numero reduzido de canhões, com tanto que sejam de calibre a poderem perfurar com seus projectis a mais espessa couraça conhecida; outros opinam ao contrario que os cruzadôres devem montar de preferencia artilharia mais leve para augmentar-se-lhe o numero de boccas de fogo, a fim de que possam bater-se com vantagem contra seus similhantes. Quando muito, sustentam estes ultimos, será permittido provêr os taes cruzadôres com um canhão de maior calibre, na previsão do caso de não lhes ser possivel o evitarem a lucta com algum navio encouraçado. Todos, entretanto, pensam unanimes com relação a dois pontos: vasto carpo de tiro para a artilharia, e a disposição do duplo fundo e dos compartimentos estanques. Esta ultima condição, quando outras razões não existissem, bastaria para condemnar a madeira como material para a construcção dos modernos navios de guerra, encouraçados ou cruzadôres.

O que é facto é que a madeira deixou de ser empregada na Europa como material de construcção desde 1871. Os primeiros navios do systema composite foram começados nos estaleiros britannicos em 1867, ao mesmo tempo que dava-se principio á Inconstant, navio em que pela primeira vez se revestia com madeira cascos feitos inteiramente de ferro. As vantagens do ferro sobre a madeira, a principio contestadas, estão hoje patentes e geralmente aceitas. A mais saliente é sem duvida a de offerecer maior solidez e duração ao casco dos navios: mas não é tampouco de somenos importancia a de tornar o cavername do navio menos pesado, deixando assim maior capacidade para a carga, si é ele destinado para o commercio, ou para os petrechos bellicos, combustivel e couraça, si de guerra. Mas, o aço começa já a substituir o ferro nas construcções navaes, do mesmo modo por que este ultimo tomára o logar da madeira. O emprego do aço neste ramo da industria humana dáta de cerca de vinte annos ; todavia, só ultimamente é que as vantagens de sua adopção se evidenciaram de modo mais incontestado. Autoridades inglezas na materia calculam que o augmento de capacidade de um navio construido de aço com relação a outro das mesmas dimensões, mas feito de ferro, regula 2 por cento do custo total do casco. Os estudos continuam nesse sentido ; prosegue-se nelles simultaneamente em varios paizes, e em particular na Inglaterra, França e Allemanha. Para decidir completamente em favor do aço só falta comprovar que este metal offerece as mesmas condições de durabilidade que o ferro quando empregado como material do esqueleto de qualquer navio. As mais vantagens reconhecidas do aço não permittem, em todo caso, duvidar de que este ultimo requisito não venha a ser igualmente satisfeito.

Os progressos da artilharia têm marchado sempre de par com os adiantamentos da construcção naval. Na competição entre o ataque e a defeza, entre a resistencia e a força de penetração ou da couraça contra o canhão, póde avançar-se mesmo que este ultimo leva ainda a melhor. A revolução, que nestes derradeiros quinze annos tem-se operado na fabricação da artilharia, deve ser attribuida antes de tudo ao notavel adiantamento dos processos mechanicos e aosprogressos da metallurgia, que permittiram substituir o ferro fundido e o bronze pelo ferro batido e pelo aço. A transição da peça de alma lisa para a peça raiada, e as modificações introduzidas na construeção e modo de reforçar o corpo do canhão constituem os traços mais marcantes dessa revolução. Todavia, não é possivel deixar de reconhecer que parte do progresso realisado na artilharia provem dos cuidadosos estudos effectuados ácêrca de outros principios e questões de elevado alcance, taes como sejam: – o traçado geral do canhão, o systema de raias e natureza destas, a disposição da carga, a qualidade da polvora, a capacidade da camara, a rotação a dar ao projectil e os meios para conseguil-o. Uma das mais importantes entre as questões apontadas, e aquella que em mais larga escala tem recompensado as investigações dos profissionaes, é a que se refere á camara da péça ou espaço reservado para a combustão da carga, e acção desta sobre o projectil. Logrou-se de feito chegar ao conhecimento de que, concedendo-se certa capacidade á camara de fogo, maior do que o exigiria em rigôr o volume da carga, conseguir-se-ha duplo resultado: – augmento de energia para o projectil, ao mesmo tempo que diminuição de esforço sobre as paredes da alma da peça. Em outras palavras, que a velocidade inicial e energia communicadas á bala graças á tal disposição, tenderão a subir de valor em proporção mais rapida do que o augmento do peso da carga, ao passo que a pressão dos gazes sobre as paredes da alma da peça, posto que mais prolongada, não será mais forte, por tornar-se maior o peso da carga, si a proporção entre o peso desta e o espaço reservado para a combustão for sempre conservado. O seguinte exemplo fará mais evidente o que ficou apenas enunciado.

(Continúa).

* The War-Ships and navies of the world

 

Autoria: Luiz de Saldanha **

Data: 01 de julho de 1881

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(**) Capitão de Fragata