Drama e glória do 1° empresário de transporte rodoviário de carga de São Paulo
Tinham as chuvas de fevereiro e o consequente transbordamento do rio Tamanduateí, bagunçando de nôvo a Várzea do Carmo. Como, de resto, ocorria anualmente há 268 anos e iria ocorrer ainda durante um século depois, quando a Várzea do Carmo já tinha sido promovida a Parque D. Pedro II.
Mas, nesse ano de 1822, como o Príncipe Regente D. Pedro de Alcântara mandara avisar que visitaria a cidade, o Senado da Câmara, de comum acôrdo com o Govêrno Provisório da Província, decidiu arrumar um pouco a Várzea. Afinal, D. Pedro era o primeiro Príncipe Real a visitar a cidade. Além do que, vinha para resolver problemas políticos.
Assim, o Capitão-General João Carlos Augusto de Oeynhausen, presidente da Junta do Govêrno Provisório da Província de São Paulo, nomeou o Coronel engenheiro Daniel Pedro Muller para, com auxílio da tropa do 2.° Regimento de Cavalaria de Milícia, aterrar uma parte dos alagadiços da Várzea, melhorando o caminho de acesso à cidade.
O Senado da Câmara, por sua vêz, nomeou João de Castro Canto e Melo “Inspetor Particular de Reparação das Estradas”, para acompanhar o andamento das obras.
Como ainda estavam em Maio e o Príncipe Regente só viria no fim de Agôsto, o Senado da Câmara decidiu remodelar também a Ponte do Franca, sôbre o Tamanduateí, junto à Várzea do Carmo.
E já que a coisa, assim, ia tomando feição política, de emulação, o Governador Oeynhausen decidiu que convinha também reparar os caminhos até a Penha, via de acesso da Côrte à cidade. E já que o Príncipe informou que iria também a Santos, era melhor reparar igualmente o caminho da serra do Cubatão …
Quem não estava gostando nada da “brincadeira” era João de Castro Canto e Melo. Sôbre êle recaia a responsabilidade de concluir as obras em tempo hábil. E se a coisa fosse nesse crescendo, onde iria parar? Acontece, também, que Inspetor de Reparação de Estradas era cargo “Honorífico”, recem-criado, cujo exercício não aumentaria um níquel nos seus rendimentos. Com 70 anos de idade, havia obtido um mês atrás, a 30 de Abril, a reforma como Coronel do 2.° Regimento de Cavalaria, depois de 45 anos de serviço ativo na caserna, com o sôldo mensal de 80$310 réis. Era ainda extremamente robusto, capaz de dobrar uma moeda de cobre com dois dedos. Façanha que o tornou popular na tropa, quando ainda Tenente e que lhe valeu o apelido de “Quebra-Vinténs”.
Sucede, porém, que o velho João Castro, cêrca de um ano antes, prelibando a reforma, tinha comprado por 3 contos de réis umas terrinhas nas colinas junto do regato do Ipiranga e ali instalara a sua residência. Comprara também uns burros de carga e montara um serviço regular de tropas de recovagem entre São Paulo e Santos. (Em outras palavras: tinha criado, sem saber, a primeira emprêsa regular de transporte rodoviário de carga de São Paulo). Não era lá coisa muito lucrativa.
Na cidade, nesse ano de 1822, para uma população de 6.920 habitantes, havia só 105 casas comerciais. Mas como a cidade não produzia nada, era tudo importado, principalmente através do pôrto de Santos. De resto, nem êle, nem ninguém, acreditava que São Paulo “desse, um dia, em coisa que prestasse”. A cidade não progredia de jeito nenhum. Há mais de dois séculos continuava quase do mesmo tamanhinho. Enquanto o Rio já estava com 30.000 habitantes; Salvador, com 30 mil; Recife, com 20 mil; São Paulo modorrava com 6.920, conforme o Bispo D. Mateus acabava de informar o Senado da Câmara, concluído pouco antes o Censo Paroquial que ordenara.
Embora robusto, João de Castro queria sua vida mais reclusa. Por isso, mudara para aquele deserto do Ipiranga.
É que sua família, 3 anos atrás, tinha sido abalada por tremenda desgraça. Imaginem que o Alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça, casado com a pobrezinha da sua filha Domitila, cismou que ela estava grávida de um filho que não era dêle, mas do seu vizinho. o Tenente-Coronel Francisco de Assis de Lorena, ajudante de Ordens do Govêrno da Província. Cismou e meteu-lhe uma facada na barriga para matar o filho espúrio. A coitada da Domitila não morreu de pura sorte. O escândalo ainda ecoava nas vielas da cidade. Processo rumorosíssimo, por isso mesmo de marcha lenta na Ouvidoria. Pudera! O sr. José da Costa Carvalho acumulava as funções de magistrado e de comerciante de “fazendas sêcas”, com casa, por concidência, na Rua do Ouvidor. 34. O mulherio não falava noutra coisa. E é bom que se diga que para 2.916 homens, havia na cidade, segundo o censo do Bispo D. Mateus, 4.004 mulheres.
Não satisfeito o Senado da Câmara em lhe dar a incômoda incumbência, designou-o ainda para, em comitiva, ir esperar o Príncipe Regente em Mogi das Cruzes e saudá-lo em nome da municipalidade.
O velho João de Castro, enquanto vistoriava dias após dias, as obras do atêrro da Várzea do Carmo ou galopando, pra cima e pra baixo, vistoriava as obras do caminho da Penha e as da serra do Cubatão, remoía o seu drama. Não era justo, depois de 45 anos de serviço ativo, já reformado, aquêle “castigo”, embora honroso.
Não esquecia ainda que no dia 23 de maio, 7 dias depois de reformado, o Governador Oeynhausen determinou-lhe comandar as tropas destinadas à repressão da “bernarda” (motim) chefiada por Francisco Inácio de Souza Queirós, que pretendia expulsar Martim Francisco Ribeiro de Andrada (irmão de José Bonifácio, desde janeiro, Ministro do Reino e Estrangeiro), da Junta que compunha o Govêrno Provisório da Provincia. Motivo principal, aliás, da vinda agora do Principe Regente. Foi sorte o pessoal do Francisco Inácio não resistir, senão teria havido uma carnificina. E êle teria sido obrigado a uma coisa dessas depois de reformado!


Para completar a sua odisséia, João. de Castro recebe carta da Côrte, do seu filho Francisco, o cadete Francisco de Castro Canto e Melo, comunicando-lhe gloriosamente que tinha tido escolhido para integrar a comitiva do Príncipe Regente na visita à Província de São Paulo. “Imagine, pai, que somos só seis pessoas. Sua Alteza Real, um secretário, dois criados, eu e o Francisco Gomes da Silva, o *Chalaça”, o senhor deve conhecer de nome”.
– Tudo isso acabado – suspira – me tranco no meu cantinho no sítio do Ipiranga e ninguém, ninguém! Mais ouve falar de mim. Afinal, estou reformado, gente! Estou velho, aposentado. Quero o sossêgo a que tenho direito!
Estava, pois, completo o drama do velho João de Castro. Tinha, portanto, não só de entregar as estradas em tempo hábil, mas lambê-las, se fosse preciso, para deixá-las a contento do Governador, do Senado da Câmara, do Príncipe Regente, dos possíveis amuos do filho se alguém não gostasse delas e até mesmo do sacana do “Chalaça”.
Nessa altura da sua aflição, podia João de Castro conceber tudo na vida, menos que:
- O seu “refúgio” no Ipiranga seria, um mês depois, cenário da Independência do Brasil e lugar público e notório.
- Que por essa estradinha da Várzea do Carmo que êle caprichava, passaria, em seguida, a coitada da sua filhinha Domitila, transformada logo depois, por obra e graça do Príncipe, na Marquesa de Santos cuja presença assolaria por 20 anos a história do Brasil.
- E que êle mesmo, João de Castro, embora doente, desencantado, achacoso, viveria mais 16 anos como dignatário do Império recém-criado, sob o aconchegante título de Visconde de Castro.
Irônico e bem humorado, deve ter suspirado lá com os seus botões: “Precisava ver a cara da minha mulher! A coitada da Escolástica já estava magrinha, cara chupada, banguela e careca. Mas, como ornou nela o título de Viscondesa de Castro!”


Das 19 principais edificações existentes então na cidade (vide Convenções), restam hoje, reformadas e modificadas, as Igrejas: do Colégio, Carmo, St. Antônio, São Francisco, São Gonçalo e São Bento Modificação radical, na planta acima, sofreu o traçado do Tamanduateí que, em 1822, corria onde hoje está a rua 25 de Março.
Daí a Ladeira do Pôrto Geral: ali existia, de fato, um pôrto fluvial. A área global da cidade, em 1822, era de, aproximadamente, 14 km2. A de hoje é de 1.650 km2. Quanto à população, deu um “pulinho” de 6.920 habitantes para 5.684.706.
Autoria: Daniel Linguanotto *
Data: 01 de dezembro de 1971
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(*) Jornalista; escritor
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