Estação Luz Trens de Passageiros
Aos que hoje observam o monumental edifício da estação da Luz e ali o movimento frenético dos trens da CPTM, parece impossível imaginar que outrora fosse aquela estação o principal ponto de chegada e partida dos viajantes que vinham e iam para o interior e o litoral paulista e, por que não, aos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso por meio de conexões com outras estradas de ferro. Tão difícil quanto, seria imaginar que nem sempre existiu naquele lugar um edifício desta grandeza, tão pouco flertar com a ideia de uma ínfima movimentação de trens e viajantes. Pois assim, se dava o cotidiano da estação São Paulo em seus primórdios, aberta pela São Paulo Railway-SPR, “a Ingleza”, no Bairro da Luz em fevereiro de 1867, na linha de Santos a Jundiaí, ferrovia assentada em bitola de 1,60m, cuja construção foi essencialmente motivada pela necessidade de escoamento da produção cafeeira.
Naquela época dois trens diários, formados por carros de dois eixos construídos totalmente em madeira, que muito se assemelhavam a carruagens, bastavam para atender o movimento de e para a capital paulista, que se limitava ao atual centro velho, com pouco mais de 40 mil habitantes. O advento da estrada de ferro, inicialmente pela linha de Santos a Jundiaí seguida por tantas outras que a partir desta galgaram as férteis terras paulistas interior adentro, trouxe grandes transformações para a Província. À medida que os trilhos avançavam, novas fronteiras agrícolas se abriam, novos núcleos urbanos se formavam e outros já existentes cresciam e a facilidade de transporte nunca antes vista promoveu um rápido crescimento da atividade econômica, que urgia grande quantidade de mão-de-obra. Neste contexto, a imigração foi preponderante para o crescimento populacional da Província. Não obstante, a fartura de recursos financeiros contribuiu sensivelmente para a instalação da indústria, que encontrou na capital paulista, a beira da estrada de ferro, a condição propícia para o seu desenvolvimento.
Se a ferrovia contribuiu largamente para a transformação do entorno, na mão inversa, o mesmo se deu do entorno para com a ferrovia. A crescente demanda do tráfego, seja de passageiros ou de mercadorias, exigiu continuamente o aumento do número de trens e o robustecimento da infraestrutura ferroviária e de seu parque de material rodante, consubstanciado pelo desenvolvimento tecnológico dos equipamentos e dos métodos de construção civil.
Chegamos em meados de 1880 e а população da Província já havia saltado de 677 mil, em 1867, para cerca de 1,3 milhão e a da capital para 60 mil habitantes. Ao tronco da SPR já se ligavam diretamente cinco estradas de ferro: a Companhia Paulista (1872); a Estrada de Ferro Ytuana (1873); a Estrada de Ferro Sorocabana (1875); a Estrada de Ferro São Paulo – Rio de Janeiro (1877); e a Estrada de Ferro Bragantina (1884) e indiretamente outras três: a Companhia Mogiana (1875); a Companhia Rio-Clarense (1884); e a Estrada de Ferro Don Pedro II(1875), esta última estabelecendo a ligação com a capital do império por meio da E. F. São Paulo – Rio de Janeiro. Entre as aqui citadas, cabe destacar a Companhia Paulista, cuja via foi construída na mesma bitola da “Ingleza”, partindo de Jundiaí em direção ao norte е noroeste paulista, estabelecendo um verdadeiro corredor entre o “Interland”, a capital e o porto de Santos, não apenas pela uniformidade da bitola, mas, também, pelo acordo de tráfego mútuo do material rodante, firmado desde 1872.
É de 1883 a notícia mais antiga que se tem de um trem expresso ligando São Paulo a Campinas, posto em tráfego a partir do dia 26 de dezembro, correndo todas as quartas feiras, em viagem de 02:55hs com seis paradas intermediárias. Mais tarde, em 1888, era publicado um novo horário constando doze trens diários em dias úteis. Destaque para os expressos entre Santos e São Paulo, realizado em 02:45hs, entre Santos e Jundiaí, este percorrido em 04:30hs.
Concomitantemente se dava o aumento e a transformação do material rodante. Locomotivas a vapor maiores e mais possantes já faziam parte do parque de tração. Os pequenos carros de dois eixos já começavam a dar lugar a carros maiores providos de truques, primeiro na Companhia Paulista a partir de 1878, depois na SPR a partir de 1887.A divisão interna em cabines era paulatinamente substituída por um salão, sendo ainda mantido o acesso pela lateral do veículo, e o tipo construtivo “americano”, consagrado nas ferrovias brasileiras, principiava seu protagonismo pelas mãos da “Paulista”, que construiu seu primeiro exemplar em 1883. Entre as principais características deste tipo se observa o corredor central com bancos dispostos nas laterais e a existência de varandas abertas nas cabeceiras por onde se dava acesso ao salão.
A virada do século foi um marco para o transporte ferroviário no estado. Em 1900 era inaugurado o novo sistema funicular e a duplicação da SPR em toda sua extensão, sendo entregue no ano seguinte o atual edifício da estação São Paulo, a Estação da Luz, ainda sem o segundo andar, construído em 1951. Obras de grande vulto, necessárias ao atendimento do crescente tráfego de passageiros e mercadorias. Acompanhando a pujança econômica do estado, era disponibilizado ao público pela Cia. Paulista em 1910, a partir de São Paulo, os primeiros carros restaurante e especiais de luxo classe “Pullman”, este último dotado de poltronas giratórias.
Os anos de 1920 também se destacaram pelas muitas inovações. Em 1922 eram introduzidos carros dormitórios em iniciativa da “Paulista” consignada ao prolongamento da bitola de 1,60m de São Carlos a Rincão. Em horário divulgado pela SPR na imprensa, válido a partir de 14 de julho, consta um par de trens noturnos de e para o interior, os primeiros do gênero, entre os 36 trens regulares que partiam e chegavam diariamente à estação da Luz. Não obstante, desde o primeiro dia daquele mês, os viajantes que se dirigiam a Campinas já desfrutavam da comodidade ofertada pela tração elétrica a partir de Jundiaí, em viagem ora reduzida de 50 para 42minutos nos trens diretos. Dava-se, igualmente, o início da circulação dos carros Pullman-Buffet, disponibilizados pela “Ingleza” nos trens rápidos para Santos, que corriam em dias úteis perfazendo todo o percurso sem paradas, exceto para a descida pelo sistema funicular, em 01:50 h.
Em maio de 1928 corria no Brasilo primeiro trem de passageiros formado por carros totalmente construídos em aço, adquiridos pela Cia. Paulista junto a American Car & Foundry, para servirem no eixo São Paulo Barretos. Para a tração dos luxuosos e pesados carros de aço a SPR adquiriu locomotivas a vapor do tipo Garrat 2-6- 2+2-6-2 (depois convertidas para 4-6-2+2- 6-4) fabricadas pela Beyer Peacock, capazes de tracionar pesadas composições entre São Paulo e Jundiaí em velocidade próxima dos 100 km/h. Daquela cidade em diante as recém-adquiridas locomotivas elétricas GE 1-C+C-1 davam continuidade a viagem até Rio Claro e, a partir de dezembro daquele ano, até Rincão, a 352 km da capital. Sete meses depois, a 1º de julho de 1929, a composição formada pelos novos carros chegava a Barretos quando inaugurada a bitola de 1,60m entre Rincão e aquela cidade.
A partir do início dos anos de 1930 o transporte rodoviário começava a fazer frente às estradas de ferro. A crescente concorrência foi o estopim para que a SPR introduzisse uma nova tecnologia no serviço de passageiros para Santos, buscando maior eficiência e conforto. Em 1934 adquiriu na Inglaterra um Trem Unidade Diesel – TUD com capacidade para 124 passageiros e potência suficiente para fazer o trajeto em 1:40h, dez minutos a menos do que os trens rápidos que até então circulavam. Batizado de “Cometa”, fez grande sucesso na époса, encorajando a “Ingleza” a adquirir mais duas unidades em 1938, com visual mais moderno e aerodinâmico, batizados de “Estrella” e “Planeta”. Com os três trens, era possível fazer dois horários sentido Santos e outros dois sentido São Paulo por dia, com um deles na “reserva”. Na mesma época, em 1936, iniciou o serviço de restaurante na mesma rota com três carros do tipo.
O recém-chegado “Cometa” visto na plataforma da estação da Luz no final dos anos de 1930. No início dos anos de 1940 a população da capital já beirava os 1,5 milhão de habitantes e a do estado já ultrapassava os 7 milhões.
Para atender a grande demanda, novos horários eram gradativamente disponibilizados.
Na época, partiam e chegavam à estação da Luz 14 trens/dia aos sábados e dias úteis, sendo seis aos domingos e feriados, na rota de Santos e outros 24 na rota do interior diariamente. Não obstante, o fluxo de passageiros na estação crescia vigorosamente em decorrência do aumento do volume de transporte suburbano, existente ao menos desde o final do século XIX, que aquela altura já exigia a circulação de 26 trens diários no trecho Mauá-Pirituba. O excessivo volume do tráfego, deveras elevado, também, pela crescente demanda do transporte de cargas, somado ao alto custo da tração a vapor, motivou a aquisição de locomotivas diesel-elétricas, que a partir de 1946 também foram empregadas nos trens de longo percurso. Mesmo ano em que se deu o fim da administração inglesa e o início da direção federal, passando а ferrovia a assumir definitivamente o nome Estrada de Ferro Santos a Jundiaí – EFSJ. Com a introdução da tração elétrica em 1950, inicialmente no trecho Mooca-Jundiaí, depois estendida até Mauá em 1952 e Paranapiacaba em 1959, as locomotivas English Electric gradativamente assumiam a tração dos trens. Mais rápidas e de maior confiabilidade permitiram a total substituição da tração a vapor até 1956. A nova tecnologia empregada na tração permitiu outros importantes desdobramentos naquela década. Com a inauguração da rodovia Anhanguera em 1950 e a iminente abertura da rodovia Washington Luiz, fato consumado em 1952, a EFSJ e a Cia. Paulista empreenderam esforços para encarar a concorrência. A primeira adquiriu em 1952 três Trens Unidade Elétricos – TUE na Inglaterra para assumir o serviço expresso entre Luz e Campinas. Apelidados de “Gualixo”, na época um famoso cavalo de corrida, perfaziam o trecho em 1:30h, em média, em quatro viagens diárias, com três paradas intermediárias. Eram os chamados trens “SC” que permitiram uma redução de 20 minutos no tempo de percurso até então praticado. No mesmo ano a segunda inaugurava os “Trens R”, com carros de aço carbono Pullman Standard recém-chegados dos EUA, cujo percurso inicial foi estabelecido entre Luz e Barretos e Luz e Bauru em oito trens diários. Com a reorganização dos itinerários o tempo de percurso foi reduzido para 8:50hs no primeiro trajeto e 6:15hs no segundo. Outro ponto que merece destaque é a chegada dos primeiros TUE’s Budd série “101”, construídos em aço inox em 1957. Adquiridos para substituir os carros de madeira utilizados nos trens de subúrbio, também foram empregados nos trens de longo percurso para Santos, os chamados trens “S”, entre aquele ano e 1970. A introdução destas composições igualmente atenderia o aumento da demanda do transporte suburbano que, entre outras intervenções exigiu a construção da plataforma central da estação da Luz, dedicada exclusivamente a este serviço, enquanto as originais, atuais plataformas 1 e 4, foram destinadas aos trens de longo percurso.
Chegamos aos anos de 1960 e a ferrovia sofria considerável perda de passageiros para o setor rodoviário. Neste período os esforços se concentraram na melhoria do material rodante empregado e na otimização dos serviços prestados. Em 1967 dava-se início ao plano de substituição dos carros de madeira por outros totalmente construídos em aço e a gradativa redução dos serviços especiais – restaurante e Pullman – com a transformação de parte das unidades existentes em carros de classe, em esforço combinado entre Cia. Paulista, a Estrada de Ferro Santos a Jundiai – EFSJ e a Estrada de Ferro Araraquara – EFA. Esta última, desde 1955, com a inauguração do primeiro trecho de sua linha tronco em bitola de 1,60m, passou a ofertar trens diretos de e para a capital. Em 1971 dava-se por concluída a substituição da frota. Para reforçar o serviço expresso até Campinas e substituir os Budd’s usados na rota para Santos, a EFSJ adquiriu novos TUE’s junto a Mafersa. Os série “141”, apelidados de “Classe Única”, gradativamente disponibilizados a partir de 1970.
Todavia, ainda que ano a ano o volume de passageiros fosse decrescente, a virada da década de 1960 para a de 1970 marcou o ápice da oferta de trens de longo percurso nas plataformas da estação da Luz. Em 1970, 64 trens eram diariamente disponibilizados ao público, sendo 44 na rota do interior e 18 na do litoral. Mas não foi apenas o tráfego mútuo com a EFA que concorreu para este número. Soma-se a este, a transferência do ponto de partida e chegada de dois trens noturnos da Estrada de Ferro Central do Brasil, o “Santa Cruz”, que serviam a rota Rio – São Paulo em viagem de 08:55hs em carros de aço inox Budd. Mais adiante, em 1976, eram quatro os noturnos naquela rota, além dos dois expressos feitos com automotrizes Budd, em dupla ou trio, em 06:14hs. Finalmente, a partir de 1978, os trens diurnos convencionais também passaram a sair da estação da Luz. Situação semelhante ocorreu nas décadas de 1920 e 1930, mas em caráter excepcional.
Do ápice de circulação de trens dado até meados dos anos de 1970, a segunda metade da década marcou uma queda vertiginosa, seja na oferta como nos investimentos empregados no serviço de longo percurso. O último investimento feito em material rodante se deu em 1974 quando a RFFSA colocou em tráfego os trens unidade diesel-hidráulicos Ganz-Mavág, fabricados na Hungria, inicialmente no eixo Rio-São Paulo. Em 1976 dificuldades e complexidade de manutenção fizeram com que a RFFSA os mantivesse em São Paulo, onde foram destacados para as rotas: Luz – Santos e Luz-Campinas-Rio Claro.
A partir de 1977, a FEPASA, sucessora da Cia. Paulista e da EFA, promoveu grande corte no número de trens de passageiros que circulavam em suas linhas, ao mesmo tempo em que era reduzida a oferta para Santos pela RFFSA. Em 1979, 12 pares de trens atendiam diariamente o serviço de passageiros entre a Luz e o interior e outros três ao litoral.
Um trecho do relatório anual da FEPASA para o exercício de 1980 evidencia a sucumbência ao transporte rodoviário e dá a deixa para futuras supressões: “Na verdade, a malha rodoviária, hoje existente, de excelente qualidade, tornou a ferrovia incompetitiva. Assim, só resta à Empresa mantê-lo, onde ainda necessário, a níveis razoáveis, promovendo, de outra parte, a sua desativação em regiões nas quais já não mais se justifica conservá-lo, por desuso que resulte na sua antieconomicidade (…)”.
Gradativamente os trens ainda em operação foram retirados, ainda que houvesse tentativas modestas de reerguer o serviço, com destaque para o projeto do “Trem Expresso” implantado durante o governo Quércia. Em 1992 eram apenas 20 trens diários no serviço de longo percurso, 14 na rota do interior e seis na do litoral. O processo de privatização da operação do transporte de cargas iniciado em 1992 veio como um ultimato ao serviço de longo percurso. Em novembro de 1996, às vésperas do início da administração privada do trecho Santos a Jundiaí pela MRS Logística, correu o último trem para Santos. A partir de 1997, em conformidade com o último plano de remodelação do serviço de passageiros empreendido pela Fepasa, a estação da Luz deixou de ser o ponto convergente dos trens que circulavam entre a capital e o interior com a transferência deste serviço para a estação Barra Funda. A primeiro de janeiro de 1999, a malha da FEPASA passou a ser operada pela Ferroban. Em 18 dias a concessionária suspendeu a circulação de todos os trens alegando que o serviço era precário e oferecia risco aos usuários. Contudo, por força de contrato foi obrigada a retomar o serviço e assim o fez, mas de forma parcial, sem atendera capital. A 15 de março de 2001 o único trem remanescente a circular no tronco da antiga Cia. Paulista, com partida em Campinas, fez sua última viagem, dando por encerrada a participação da ferrovia no transporte de passageiros de longo percurso dentro do estado de São Paulo.
Autoria: Rafael Prudente Corrêa Tassi * e Thomas Otávio Alves Corrêa **
Data: 01 de janeiro de 2020
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(*) Consultor em projetos e pesquisa na Sociedade de Pesquisa para a Memória do Trem e Coordenador das atividades relacionadas ao patrimônio ferroviário para fins de licença ambiental na empresa Arqueologika: Consultoria em Arqueologia e Negócios Socioculturais. Responsável pela coordenação de diversos trabalhos técnicos de preservação, restauros, organização e divulgação de acervos ferroviários, autor de diversos artigos relacionados ao tema e do livro “Locomotivas Elétricas da Companhia Paulista de Estradas de Ferro”.
(**) Administrador de empresas, consultor e pesquisador na Sociedade de Pesquisa para a Memória do Trem, participou da elaboração e execução de trabalhos técnicos e culturais voltados a preservação da memória ferroviária.