Evoluir sem avançar
Este espaço prima pela modernização do ônibus urbano, sendo que a tecnologia, os sistemas de tração limpa, a segurança e o conforto dos passageiros e condutores são imperativos para que sua evolução possa contribuir com a qualificação da mobilidade nas cidades brasileiras. Entretanto, em virtude das particularidades de um País continental como é o nosso, bem como da falta de incentivos à operação, a simplicidade veicular ainda predomina (até quando não sabemos) nos cenários urbanos. Com o predomínio do modelo que adota o motor dianteiro, a suspensão metálica, a transmissão manual e uma configuração interna que não favorece em nada a comodidade do passageiro, o transporte coletivo nas cidades brasileiras por si próprio já é um desafio que exige um veículo robusto e ao mesmo tempo singelo (pra não dizer espartano). A falta de infraestrutura adequada (topografia, falta de pavimento, dimensionamento errado de ruas e avenidas) para que versões modernas dos veículos possam ser utilizadas adequadamente e a questão econômica operacional (o passageiro é quem banca esse serviço essencial em quase a sua totalidade) são os principais aspectos adversários (entraves/obstáculos). Atente-se ainda pela ingerência de muitos gestores municipais que procuram introduzir ideias que não observam a padronização de construção dos veículos (maior custo e o fortalecimento de uma indústria artesanal). Isso reforça as diversas tipologias veiculares ao sabor das vontades de quem não anda de ônibus.
Entretanto, vejamos pelo lado técnico (e este espaço procura isso), e chegaremos a conclusão que estamos muito atrasados e que ainda há uma distância considerável para se modernizar um serviço que é fundamental no desenvolvimento das cidades. Claro que não é viável a radicalização. Nos últimos anos, a indústria promoveu alguns ganhos ao modelo dotado do motor frontal, como a introdução da suspensão pneumática. Ponto positivo para a configuração que admite carroçarias com até 13,20 metros de comprimento (há uma proposta em discussão para uma versão com 15 metros, dotada de terceiro eixo direcional). O passageiro, com certeza, não terá mais uma sinfonia de ranger dos metais ao encontro de seus ouvidos.
Para promover o impulso aos melhores ônibus, a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) está revisando a Norma NBR 15.570 (com a finalidade de proveitos aos passageiros e motoristas), que determina as características de construção dos chassis e carroçarias urbanas, em função da solicitação de uma grande montadora ao propor a inclusão do ônibus articulado com a dita propulsão dianteira, claro que acompanhada de alguns componentes que possam diferenciar essa proposta, e que atendem ao exigido pela referida Norma, como a suspensão a ar, o câmbio automático ou automatizado (opiniões revelam que essa última opção ainda não está tão madura para o transporte urbano), a relação potência/torque/peso e os freios com sistema ABS.
Alturas do quadro, do acesso e piso do salão dos passageiros também devem ser observadas, pois o modelo com motor na frente costuma ter uma altura acima de 1.010 mm (nível do piso do salão). Com isso, a presença do sistema de rebaixamento da suspensão (Kneeling System) poderá proporcionar um embarque e desembarque mais digno do cliente, no caso de acesso pelas escadas. Tal elemento tecnológico ainda deverá contribuir para que a altura do referido piso alcance 920 mm, dimensão das outras versões de ônibus articulados, adequada para o nivelamento com as plataformas dos corredores. Será um belo exercício de engenharia para que as alturas sejam atendidas, sem comprometer a segurança e a acessibilidade.
E o motorista, o comandante do trajeto, será beneficiado por mais essa inovação, mesmo tendo como companheiro um motor (a diesel) que de silencioso não tem nada? O Ministério Público do Trabalho (seção de Belo Horizonte, MG) está questionando os fabricantes de chassis, carroçarias, operadores locais e a ABNT para a justificativa da falta de atendimento à legislação do trabalho, especialmente no que diz respeito às questões termoacústicas (ruído interno, calor e vibrações).
Será necessário um rearranjo do cockpit para que se alcance uma condução com mais conforto. Chegaremos uma solução adequada? Mais uma dor de cabeça para os departamentos de engenharias das fabricantes de ônibus.
Uma potência de até 300 cavalos será o suficiente para transportar 140 passageiros em condições positivas? Dependendo da operação, até é possível, caso a topografia plana prevaleça em seu histórico. Mas esta não é uma realidade na operação. Ou seja, é possível que tenhamos um veículo inadequado para cidades inadequadas, parecendo que remamos ao contrário do que seria o curso natural do avanço: disponibilizar veículos melhores para cidades mais preparadas e não simplesmente nos adequar a uma realidade que não é a ideal.
A questão mercadológica é a oportunidade para que esse tipo de chassi volte ao debate no setor. Na opinião deste espaço, os modelos de ônibus articulado e biarticulado são veículos especiais, que deveriam ser enquadrados em operações específicas, para atender as altas demandas de passageiros, com prioridade e ganhos em suas utilizações. Já há muito ônibus nas ruas disputando espaço com o automóvel, sempre em detrimento ao modal. Se a proposta do articulado com propulsor na dianteira é para os corredores do tipo BRT (Trânsito Rápido de Ônibus) ou outra forma que propicie êxito operacional, sendo que o piloto da “nave” tenha melhores condições de trabalho, os passageiros não sofram com os efeitos negativos de uma configuração diferenciada (acesso, layout do salão, ruídos e calor) e as características mecânicas possam dar desempenho ao veículo, a versão deverá ser uma tendência.
Ainda resta a dúvida se essa nova configuração, com a meta de ser de baixo custo, não terá seu valor muito próximo ao modelo com propulsor traseiro ou central. Afinal, todo o processo de modernização envolve investimentos tecnológicos e o preço a ser pago sempre é o mais alto. É preciso clareza nas relações para que a redefinição da norma possa ser a base em que a evolução dos ônibus urbanos contribua com a mobilidade e a qualidade dos serviços.
Se estamos buscando a excelência operacional e peculiaridades na configuração veicular visando a transformação dos serviços de ônibus para melhor, nada mais justo do que lutarmos por definições dignas que venham ao propósito dessa renovação. Evoluir sem avançar pode parecer capcioso. O objetivo é esse mesmo, implicar no ideal do constante questionamento para nos aproximar da modernidade e não do retrocesso, mesmo que parcial. Sem melhorias, sejam nos veículos e nos sistemas, continuaremos ver a de bandada dos passageiros porta a fora dos ônibus.
Autoria: Antonio Ferro *
Data: 01 de outubro de 2016
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(*) Editor da Revista AutoBus