Ano: 1415
As grandes navegações
Por que Portugal, um pequeno país da parte Ibérica da Europa, se lançaria com êxito à expansão de seus territórios e rotas comerciais ultramarinas? Esta é a pergunta que norteou grande parte das pesquisas sobre as grandes navegações e a história dos descobrimentos nos últimos tempos.
A resposta para esta indagação, obviamente, não se reduz a uma causa exclusiva. Diversos fatores – econômicos, políticos e religiosos, dentre outros – ensejaram o ambicioso e pioneiro empreendimento.
De acordo com Boris Fausto, Portugal conseguiu estabilizar-se ao longo do século XIV com um governo consolidado e fronteiras geográficas mais bem definidas que os outros países da Europa. Naquele momento, o continente passava por uma série de transformações causadas pelas disputas entre mouros e cruzados por territórios internos, na região do Oriente Médio e norte da África.
Portugal viveu um processo decisivo com a chamada Revolução de Avis, entre 1383 e 1385. O conflito está relacionado, entre outros motivos, às Guerras de Reconquista dos territórios europeus, uma série de batalhas ocorridas principalmente na região ibérica, que culminou na expulsão dos mouros que a haviam dominado nos séculos anteriores.
O ponto decisivo da revolução foi a coroação de Dom João I (1357 – 1433), que ascendeu ao trono dando início à dinastia dos Avis e fim à crise sucessória experimentada por Portugal entre 1383 e 1385. Dessa forma, o país reorganizou seu território e consolidou sua independência em relação ao Reino de Castela (FAUSTO, 2013, p. 21).
Boris Fausto ainda argumenta que, apesar de alguns historiadores defenderem o caráter e a participação dos burgueses no processo revolucionário, a monarquia portuguesa saiu fortalecida. A centralização e a consolidação do Estado português sob o controle da monarquia favoreceram o agrupamento de setores como a nobreza, a classe mercantil e a burocracia nascente. Essas condições foram fundamentais para a expansão de projetos ultramarinos e para o posterior controle de novas possessões no além-mar (FAUSTO, 2013).
Economicamente, Lisboa representava, à época, um dos mais importantes centros comerciais do mundo. Com rotas de navegação já estabelecidas, a cidade refletia um intenso comércio de produtos trazidos das Índias e de partes da África. Além disso, a posição geográfica de Portugal favorecia não apenas a saída pelo Atlântico, mas também sua conexão com o norte do continente africano e, portanto, às passagens possíveis para o oriente. A busca por ouro e especiarias determinaram as razões materiais para que a Coroa portuguesa e, depois, a espanhola, patrocinasse as viagens.
Cabe destacar que a tomada de Constantinopla, atual Istambul, pelos árabes e turcos islâmicos, em 1453, foi um duro golpe para o comércio europeu, que dependia dessa passagem para ter acesso a especiarias, sedas, joias e metais advindos da Índia, China, Japão, Indonésia e do mar Índico (MESGRAVES, 2019, p. 10). Esse fato também foi decisivo no período das grandes navegações.
Além das questões políticas e econômicas mais evidentes, nota-se o peso que o imaginário fantástico e o apreço pelas aventuras tiveram na empreitada pelos mares. A busca por terras fantásticas e abundantes em riqueza foi bastante estimulada pela lendária carta do Preste João, um imperador medieval indiano que narrou, num documento pseudo-autografado, as maravilhas de seu reino.
De religião cristã, o reino de Preste João era a materialização de um paraíso e estimulou os desejos de europeus descobrirem novas terras e fortalecerem suas conquistas frente à expansão islâmica no Mediterrâneo (SILVA, 2012).
A carta do Preste João sugere a unificação da cristandade oriental e ocidental através de uma aliança militar e “cruzadística” para a conquista das terras de Jerusalém (RAMOS, 1998, p. 10). Assim, seu conteúdo revela uma grande quantidade de descrições sobre maravilhas exóticas orientais, incentivando a conformação de um reino divino sob a égide do cristianismo.
Veja um trecho da carta:
“A nossa Magnificência domina as três Índias; o nosso território começa na Índia posterior, na qual repousa o corpo do apóstolo São Tomé, estende-se pelo deserto em direcção (sic) ao berço do sol, e desde até à deserta Babilónia, contígua à torre de Babel. Setenta e duas províncias nos prestam vassalagem, das quais poucas são de cristão e algumas têm reis próprios, os quais, todos eles, são nossos tributários. Na nossa terra nascem e crescem elefantes, dromedários, camelos, hipopótamos, crocodilos, metagalinários […], cavalos e burros selvagens, homens de cornos, bois selvagens, homens selvagens, monóculos, homens com olhos adiante e atrás, homens sem cabeça” […] (RAMOS, 1998, p. 55-57).
“Certo é que os homens dessa terra abundam em pedras preciosas e fulvo ouro. Todos esses homens, que vivem do pão celeste, vivem quinhentos anos. E, todavia, ao atingir os cem anos, rejuvenescem e renovam-se bebendo todos três vezes de uma certa fonte que brota junto da raiz de uma árvore que se ergue na mencionada ilha” (RAMOS, 1998, p. 67-69).
Página do “Libro de la Cosmographia”, de Pedro Apiano, que trata da descrição do mundo e suas partes.
Na página em destaque, uma representação da Terra em quatro partes, formadas pela Ásia, Ásia Maior e Índia, Oceano Índico, África e, por fim, o norte da África e a Europa.
Publicado por: Vendese en Enveres [Antuerpia]: en casa de Gregorio Bontio, 1548.
Fonte: Biblioteca Nacional, acervo de Obras Raras
A ideia dessa comunidade imaginada perdurou até a Idade Moderna e foi intensamente recuperada durante o período das Grandes Navegações. A possibilidade de encontrar riquezas em terras desconhecidas misturava-se, então, com o desejo de desbravar lugares nos quais se imaginava existirem seres míticos e fantásticos.
Apesar de a carta do Preste João ter sido um documento propositalmente elaborado com conteúdos inventados, ela se constituiu a partir de um “dado real”: a existência da Etiópia, no leste da África, onde vivia uma população cristã (FAUSTO, 2009, p. 28).
Existem várias versões do documento, mas a mais conhecida pelos estudos históricos, geográficos e literários, foi publicada em 1879, por Friedrich Zarncke (RAMOS, 1998). Essa versão teria tomado como texto original a versão latina, produzida entre 1160 e 1190 e reconstruída por Zarncke a partir do confronto de exemplares latinos sobreviventes. O debate sobre a veracidade das várias versões e o cotejo entre elas ainda suscita muitas dúvidas sobre o impacto e a constituição do documento entre as pesquisas historiográficas.
Não obstante, a carta desempenhou um importante papel no acionar do imaginário de navegantes, nobres e comerciantes por todo o mundo ocidental e cristão. Em 1487, os diplomatas e exploradores portugueses Pero de Covilhã (1450-1530) e Afonso de Paiva (1443-1490) deixaram Portugal, a serviço da Coroa, para descobrir o caminho terrestre para as Índias.
Dom João II disponibilizou toda a logística necessária para a localização do reino de Preste João. Os exploradores deveriam estabelecer contato com o imperador e incrementar as relações comerciais, fomentando o comércio no Índico (SILVA, 2012).
“A partir dessa empreitada portuguesa na Etiópia e as informações levantadas sobre este reino, a lenda do Preste João foi gradualmente perdendo o interesse entre os portugueses e o resto da Europa, e foi dando espaço a preocupações mais urgentes, como o descobrimento e manutenção das terras na América e o lucrativo comércio no Oriente” (SILVA, 2012, p. 10).
Esse conjunto de fatores pode explicar mais detalhadamente o período conhecido como Grandes Navegações. De acordo com grande parte da historiografia produzida sobre o tema, o início desse processo foi a conquista da cidade de Ceuta, em Marrocos, em 1415 (FAUSTO, 2009, p. 28).
Durante o conflito, o infante Dom Henrique, filho de Dom João I, sagrou-se cavaleiro na vitória portuguesa sobre os muçulmanos. Posteriormente, tornou-se comandante da Ordem de Cristo, tendo assumido o cargo de governador do Algarve (MONTEIRO, 2001).
A Dom Henrique teriam sido atribuídas, séculos depois das grandes navegações, a fundação e manutenção da mítica Escola Naval de Sagres, local onde se reuniam muitos navegadores. De acordo com Thomaz de Souza (1953), a construção de uma escola dotada de instrumentos para o ensino científico da navegação e de observatório astronômico refletia um imaginário estimulado por crônicas e poemas que circularam em Portugal e no Brasil. Muitos dos livros didáticos de nosso país ainda recuperam a existência da Escola Naval de Sagres.
Para Maria Isabel João, “a importância de Sagres no imaginário contemporâneo, nacional e estrangeiro, é indissociável da figura do homem que ficou para a história como principal impulsionador dos descobrimentos portugueses” (JOÃO, 2005).
Atribuir a Dom Henrique – que pouco navegou durante sua vida – a imagem de um navegante detentor de saberes técnicos, revela a construção de uma memória e de uma identidade nacional portuguesa que buscam resgatar a figura de homens-heróis dos tempos das grandes navegações.
Textos literários, em prosa e verso, descrevem os exploradores dos séculos XV e XVI de forma gloriosa. À semelhança do herói medieval, o explorador serve a Deus e ao rei, e combate os infiéis, ao mesmo tempo que “é movido pela busca do conhecimento, com um espírito de investigação sistemática e capaz de se rodear dos indivíduos mais capazes para o ajudar a realizar o seu empreendimento” (JOÃO, 2005, p. 411).
Apesar da inexistência formal de uma escola que ensinasse técnicas de navegação, é fato que Portugal fez uso de uma série de avanços científicos para colocar em prática suas pretensões ultramarinas. Destacam-se as caravelas, embarcações fortes e mais velozes, capazes de realizar longas viagens com mais espaço para cargas e tripulação.
As caravelas permitiam navegar “à bolina”, isto é, navegar em zigue-zague com ventos contrários. Mais tarde, para as longas viagens até à Índia, as caravelas aumentaram de tamanho e utilizaram velas redondas, que davam mais velocidade com ventos favoráveis.
Gravura com a representação de uma caravela, imagem parte da série Americae Tertia Pars Memorabile Provinciae Brasiliae Historiam, produzida pelo artista belga Theodore de Bry, em 1596.
As caravelas foram empregadas, a partir de 1441 (FAUSTO, 2013, p. 26), pelos portugueses, para os seus descobrimentos e expedições na Costa Ocidental de África. A Espanha adotou esse modelo na viagem em que Cristóvão Colombo chegou à América, em 1492 (FONSECA, 1934).
É importante salientar que não há consenso sobre as caravelas terem sido inventadas pelos portugueses, visto que existem registros de viagens realizadas por chineses e muçulmanos, que podem ter utilizado embarcações como essas. Mas isso não exclui o fato de que as caravelas, juntamente com o quadrante, o astrolábio e a bússola, foram instrumentos fundamentais para ampliar as possibilidades de realizar com êxito longas viagens por mares desconhecidos.
O desenvolvimento das técnicas de navegação foi estimulando ainda mais a empreitada dos homens do Velho Mundo por novas terras. Após a conquista de Ceuta, os portugueses chegaram à Madeira, em 1419; aos Açores, em 1427; às Ilhas de Cabo Verde, em 1460, e a São Tomé, em 1471 (FAUSTO, 2013, p. 29).
Destaca-se a passagem pelo Cabo Bojador por Gil Eanes, em 1434, e a superação do Cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias, em 1487, viagem que derrubou mitos e crenças que sustentavam a teoria da terra plana. No século XVI, a circunavegação de Fernão de Magalhães comprovaria o formato esférico da terra.
A corrida pelo domínio das rotas ultramarinas envolveu ainda os espanhóis, cuja viagem de maior êxito foi a de 1492, quando Colombo chegou à América. Patrocinado pelos Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, Colombo acreditava que a terra era redonda e, portanto, que seria possível chegar às Índias pelo Ocidente (MESGRAVES, 2019).
No meio do caminho, porém, o navegador espanhol encontrou um vasto continente, que começou a ser explorado por Hernán Cortez, em 1519, e que se revelou território de culturas e civilizações milenares, detentoras de conhecimentos técnicos sobre astronomia e agricultura.
Em 1497, seria a vez de Vasco da Gama (1469-1524) chegar até as Índias, contornando o Cabo da Boa Esperança, feito que seria eternizado pelos versos do clássico português “Os Lusíadas”, de Luís de Camões.
As grandes navegações, iniciadas em princípios do século XV, foram uma das mais importantes “aventuras marítimas” da história (FAUSTO, 2013, p. 21). Suas causas e consequências são tema de um longo debate historiográfico, que pode enriquecer a nossa percepção sobre as sociedades coloniais e ampliar o nosso conhecimento sobre a história do Brasil.
Mapa do mundo Typus Orbis Terrarum, produzido em 1570 por Frans Hogenberg Abraham Ortelius, a partir da projeção de Mercator.
Fonte: Biblioteca Digital da USP
Referências Bibliográficas:
BOXER, Charles Ralph. O império colonial português: 1415-1825. Edições 70, 1981.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.
FONSECA, Quirino da. A Caravela portuguesa: e a prioridade técnica das navegações henriquinas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934.
JOÃO, Maria Isabel. “Sagres, lugar mítico da memória”. Universidade Aberta. Portugal, 2005.
MONTEIRO, Ney Marino. As grandes navegações e o descobrimento do Brasil. Revista da Escola Superior de Guerra, n. 40, p. 188-209, 2001.
RAMOS, Manuel João. Carta do Preste João das Índias: versões medievais latinas. Assírio e Alvim, 1998.
SILVA, Thiago Gredilha Nunes. “O Reino do Preste João imaginado no século XVI”. Anais do XV Encontro Regional de História da Anpuh -RJ. Rio de Janeiro, 2012.
SOUZA, Thomaz Oscar Marcondes de. “Ainda a suposta Escola Naval de Sagres e a náutica portuguesa dos Descobrimentos”. Revista de História, v. 6, n. 13, p. 181-192, 1953.