Ano: História pré-colonial, até 1500

Caminhos indígenas da Amazônia pré-colonial

Os primeiros registros escritos que documentam a existência de caminhos abertos pelos indígenas entre o Acre e a Bolívia, em períodos pré-coloniais, datam de 1888. Na ocasião, o texto intitulado “Viagem exploradora do Rio Madre de Dios ao Acre”, publicado na Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, descreveu uma viagem feita por um grupo de 35 pessoas lideradas por Antonio Rodrigues Pereira Labre (1827-1899). O coronel maranhense desejava traçar possíveis rotas para o escoamento da borracha retirada das seringueiras da região.

As informações – recuperadas por Maria Guimarães em reportagem para a Revista Pesquisa Fapesp – relatam que o grupo percorreu 200 quilômetros do rio Madre de Dios, na Bolívia, até o rio Acre, no Brasil. Além de reconhecer a rota, a expedição também deixou informações importantes sobre as populações indígenas que habitavam essa região amazônica.


Sulcos que cortam o solo entre geoglifos, no leste do Acre, já foram caminhos bem mantidos.
Foto: Sanna Saunaluoma

“Desta maloca deserta seguimos para Canamary, passando em caminho lugares de povoações antiquíssimas, muitas encruzilhadas e estradas, ora para a direita e ora para a esquerda”, escreveu Labre em seu registro de 1888 (GUIMARÃES, 2021).

O mapeamento mais aprofundado desses caminhos foi possível quando, em 2014, uma equipe liderada pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), foi contratada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para realizar uma avaliação do impacto ambiental causado pela construção de uma torre de linha de transmissão. A torre havia sido instalada, anos antes, bem no meio de um pequeno trecho de um desses caminhos indígenas posteriormente identificados.

Na ocasião, a análise encabeçada por Neves criou um sítio-escola com estudantes do Acre, de Rondônia e de São Paulo. Os dados coletados durante a pesquisa de impacto foram fundamentais para a elaboração de um artigo publicado na revista Latin American Antiquity, em fins de 2020 (GUIMARÃES, 2021).

Em parceria com a arqueóloga finlandesa Sanna Saunaluoma e pelos pesquisadores Justin Moat e Francisco Pugliese, o artigo estuda sítios arqueológicos que revelam a existência de aldeias com padrões de tamanho, cronologia, cultura material e desenho bem definidos. As novidades apresentadas pela produção científica revelam uma “paisagem pré-colombiana repleta de povoações conectadas por estradas bem mantidas” (GUIMARÃES, 2021).

A pesquisa concentra-se em resquícios de 18 povoados caracterizados por uma grande praça central circular ou elíptica, que tem entre 2 e 3 hectares de diâmetro (GUIMARÃES, 2021). Em volta dela, existem de 15 a 25 montículos – elevações de terreno pouco saliente –, com cerca de 2,5 metros de altura e entre 10 e 25 m de comprimento na base. Saindo desses povoados, existem caminhos afundados que, segundo os pesquisadores, estão direcionados para os cursos d’água próximos ou para outras aldeias (GUIMARÃES, 2021).

“As aldeias compreendem vários montículos de terra dispostos ao redor de praças centrais e caminhos que se projetam ou convergem desde ou até os sítios. Os caminhos conectavam as aldeias situadas a uma distância de 2 a 10 quilômetros entre si e no leste do Acre. Nosso estudo atesta a existência de grandes povoações interfluviais sedentárias que compartilham as mesmas identidades socioculturais, assim como padrões estruturados de movimento e planejamento espacial em relação aos sistemas operativos de redes viárias durante o período pré-Colonial Tardio” (SAUNALUOMA, et al, 2020, p. 01. tradução minha).

Os pesquisadores alegam que, por meio do mapeamento, foi possível identificar aldeias muito semelhantes às comunidades organizadas por redes de caminhos como as que habitavam as regiões do Alto Xingu e dos Llanos de Mojos, no norte da Bolívia.

“Considerando a evidência etno-histórica e etnográfica, assim como a presença de sítios arqueológicos comparáveis e características de movimento de terras ao longo da margem sul da Amazônia, sugerimos que as aldeias com praças do Acre estavam conectadas aos territórios vizinhos por uma rede de caminhos inter-regionais situados ao longo da margem sul da Amazônia, e esse movimento pelos caminhos foi o principal meio de transporte humano nas zonas interfluviais amazônicas” (SAUNALUOMA, et al, 2020, p. 01. tradução minha).

De acordo com Maria Guimarães, o reconhecimento da região foi feito através de drones que, mapeando os sítios arqueológicos, foram identificando caminhos e estruturas de uma rede muito mais extensa do que se imaginava. Além disso, os isótopos de carbono permitiram determinar que as estruturas foram construídas entre os anos 1300 e 1600 (GUIMARÃES, 2021).

A pesquisa mais atual também é cotejada com outras investigações em curso. Elas buscam entender aspectos da organização social e os hábitos de consumo e cultivo dos indígenas. Os sítios monticulares mapeados recentemente fazem parte de uma região que pode ter sido palco de intensas viagens protagonizadas por habitantes de uma série de aldeias e comunidades distintas, em datas ainda mais longínquas.

Na parte oeste da Amazônia, as pesquisas começaram há cerca de 20 anos, quando o paleontólogo gaúcho Alceu Ranzi, da Universidade Federal do Acre, sobrevoou a área e avistou, da janela do avião, um grande círculo no chão (GUIMARÃES, 2021).

Desde a descoberta desse primeiro geoglifo (valas e valetas geralmente de formato circular, com diâmetros que variam e dentro das quais há, em alguns casos, resquícios de velhas moradias), já foram registrados mais de 500 sítios na região, cujos vestígios apontam diferentes momentos da nossa história pré-colonial.

Maria Guimarães escreve que, ao contrário do que se imaginava, as escavações revelaram que geoglifos geométricos do leste do Acre não eram locais de habitação, mas arenas cerimoniais para onde convergiam grupos que viviam em outros lugares.

A conexão entre essas estruturas mais antigas pode ter sido feita através de estradas, conforme sugerem os autores Martti Pärssinen e Alceu Ranzi, em capítulo publicado, em março de 2020, no livro (I)mobilidades na pré-história, organizado por Raquel Vilaça e Rodrigo de Aguiar (GUIMARÃES, 2021).

Em entrevista dada por e-mail à Maria Guimarães, Pärssinen afirmou: “A amostra de radiocarbono mais antiga que obtivemos da fazenda Tequinho, no Acre, estava claramente associada à estrada norte do sítio e tinha uma data entre 63 a.C. e 124 d.C.”. Vale destacar que, posteriormente, os pesquisadores encontraram vestígios ainda mais antigos em outro sítio da região, que datavam de 750 a.C.

Maria Guimarães escreve que, “para Pärssinen, o artigo recente de Saunaluoma e Neves traz informações novas e relevantes sobre o período mais recente dos geoglifos, quando aparentemente algumas das estruturas geométricas anteriores ainda mantinham função puramente cerimonial”.

De acordo com o pesquisador finlandês, tudo leva a crer que a rede de geoglifos geométricos evidencia um “sofisticado sistema de estradas”, que pode ter pertencido “a uma civilização multiétnica com uma visão de mundo em comum e que compartilhava traços culturais” (GUIMARÃES, 2021).

Os locais das pesquisas arqueológicas no Acre também fazem parte de uma ampla rede de investigações que tenta mapear as ocupações indígenas da região do Amazonas durante o período pré-colombiano.

Em 2018, por exemplo, o arqueólogo brasileiro Jonas Gregório de Souza e outros pesquisadores da britânica Universidade de Exeter, em conjunto com a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), encontraram novos sítios na região do Tapajós, ao norte do Mato Grosso.

Os vestígios encontrados revelam construções e desenhos geométricos escavados no solo, características que evidenciam que a ocupação humana dessa região se difere dos sítios encontrados nas regiões da Bolívia e do Acre. Nota-se que esses sítios pré-colombianos circundados por valetas ou paliçadas são bastante comuns na região, podendo ser identificados também no Alto Xingu, na confluência dos rios Negro e Solimões, próximo a Manaus, no Amapá e na Guiana Francesa (PIVETTA, 2018).


O Acre é repleto de geoglifos, formas geométricas desenhadas no solo que podem ser perfeitamente vistas de cima.
Imagem intitulada: Faz. Dois Irmãos.
Plácido de Castro.
Autor: Edison Caetano.
Extraído de SCHAAN, Denise Pahl; RANZI, Alceu; BARBOSA, Antonia Damasceno (Org.).
Geoglifos: paisagens da Amazônia Ocidental. Rio Branco: GKNORONHA, 2010, p. 29.

Apesar das diferenças com os sítios investigados por Sanna Saunaluoma e Eduardo Neves, “os autores do estudo afirmam que, se olhados em conjunto com os sítios da Bolívia, do Acre e do Xingu, os resquícios de presença humana no Tapajós fazem parte de um cinturão de 1.800 quilômetros de extensão, com evidências de ocupação humana no sul da Amazônia no período pré-colonial. Apesar de haver distinções regionais, um grande traço comportamental uniria os habitantes dessa faixa meridional da floresta: esses povos desaparecidos, que viveriam em aldeias fortificadas, deixaram marcas no solo de sua presença” (PIVETTA, 2018).

A existência desses diferentes pontos de ocupação pela região amazônica conforma, de acordo com Marcos Pivetta, um “cinturão de ocupação humana” num espaço que representa cerca de 7% de toda a bacia amazônica. Nele, teriam vivido entre 500 mil e 1 milhão de indígenas, em cerca de 1.500 aldeias, entre os anos 1250 e 1500.


Imagem de um geoglifo do Acre.
Imagem intitulada: Hortigranjeira Capixaba.
Autor: Edison Caetano.
Extraído de SCHAAN, Denise Pahl; RANZI, Alceu; BARBOSA, Antonia Damasceno (Org.).
Geoglifos: paisagens da Amazônia Ocidental. Rio Branco: GKNORONHA, 2010, p. 46

As recentes descobertas reforçam uma hipótese defendida por parte dos arqueólogos que estudam a região: a de que a floresta tropical, que se estende pelo Brasil e mais oito países da América, teria abrigado sociedades diversas, complexas e de diferentes culturas, e uma numerosa população antes da chegada dos europeus.

Que caminhos indígenas os vestígios arqueológicos e pesquisas científicas ainda têm para nos revelar?

 Referências Bibliográficas:

GUIMARÃES, Maria. “Povos interligados da Amazônia antiga”. Revista Pesquisa da Fapesp. Edição 299, janeiro de 2021.

LOPES, Reinaldo José. “Acre tinha rede de estradas antes de Cabral”. Folha de S. Paulo. 03 de janeiro de 2021.

PESSOA, Cliverson. “Do Manutata ao Uakíry: história indígena em um relato de viagem na Amazônia Ocidental (1887)”. Tellus, p. 81-103, 2017.

PIVETTA, Marcos. “Mais gente na floresta”. Revista Pesquisa da Fapesp. Edição 267, maio de 2018.

SAUNALUOMA, S., Moat, J., Pugliese, F., & Neves, E. (2020). “Patterned Villagescapes and Road Networks in Ancient Southwestern Amazonia”. Latin American Antiquity, 2020, 1-15.

SOUZA, J. G. et al. “Pre-Columbian earth-builders settled along the entire southern rim of the Amazon”. Nature Communications. 27 mar. 2018.