Ano: 1808
Chegada da família real portuguesa
A vinda da Família Real portuguesa para o Brasil impactou profundamente o antigo sistema colonial, que pressupunha o exclusivo comercial, a utilização da mão de obra escrava e as formas de administração e controle da metrópole sobre a colônia.
Segundo Fernando Novaes, “sistema colonial (…) é o conjunto das relações entre as metrópoles e suas respectivas colônias, num dado período da história da colonização” (1995, p. 57). A mudança da Família Real para o Brasil alterou o antigo quadro dessas relações e transferiu boa parte da administração da metrópole para dentro da colônia.
A primeira grande transformação desse processo foi a abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Com o fim do exclusivo comercial, a colônia poderia dar novos sentidos às suas práticas econômicas, estabelecendo relações de troca comerciais com outros países, sobretudo com a Inglaterra, que, naquele momento, buscava fortalecer exportações num contexto de aprofundamento do capitalismo industrial.
Mas a vinda da Família Real para o Brasil foi uma empreitada monumental. Do ponto de vista do transporte, significou a transferência não só dos membros da corte, mas de suas posses. Basicamente, tratava-se de levar à colônia aqueles que compunham e trabalhavam para a corte, assim como tudo aquilo que dava significado às práticas, aos comportamentos e ao estilo de vida perpetuado pela elite colonizadora.
O contexto histórico que marca a vinda da Família Real para o Brasil está relacionado com o projeto de expansionismo de Napoleão Bonaparte. Depois de derrotado pela Batalha de Trafalgar, em 1805, quando o esquadrão naval britânico conseguiu se impor diante das esquadras francesas e evitar a invasão da Inglaterra, Napoleão tentou firmar vitória de outras formas.
Assim, lançou mão do Tratado de Berlim de 1806, que pôs em vigor o bloqueio continental aos países da Europa, que consistia em impedir o acesso de navios do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda a portos dos países dominados pelo império francês. Com essa estratégia, buscava romper a hegemonia econômica protagonizada pela Inglaterra.
Segundo Luís António de Oliveira Ramos, para que o propósito expansionista de Napoleão triunfasse, era fundamental que os países ibéricos aderissem ao bloqueio, com a ameaça de que, se não respondessem à determinação francesa, teriam seus territórios invadidos e anexados ao império francês.
Em princípios do século XIX, Portugal detinha uma das principais colônias do mundo. O Brasil representava um grande polo de exportação de matérias-primas e consumo dos produtos manufaturados, que, em grande medida, eram produzidos pela Inglaterra. Grande parte dos acordos comerciais que determinavam o monopólio do comércio transatlântico praticado entre a colônia brasileira e a metrópole fazia concessões à Inglaterra, que se beneficiava como centro exportador de bens diversos para o consumo da população da colônia. Produtos que Portugal não era capaz de produzir.
Napoleão determinou então:
“Que os portos de Portugal fossem fechados aos navios e comércio da Grão – Bretanha”; “Que todo o inglês domiciliado ou residente em Portugal” passasse a prisioneiro de guerra; “Que os bens e mercadorias de propriedade inglesa de qualquer qualidade fossem sequestradas”, mesmo se pertença de particulares; Que se “recebesse em Portugal um exército francês para defender as costas e portos do reino contra as esquadras da Inglaterra” (DE OLIVEIRA RAMOS, 2009, p. 58).
O bloqueio representava um grande impacto para os negócios realizados nesse comércio triangular entre colônia, metrópole e Inglaterra.
Desde o anúncio do bloqueio continental, Portugal tentou, com a ajuda de diplomatas em Lisboa, Paris, Londres e Madri, dissuadir Napoleão da decisão. Internamente, os representantes do Conselho de Estado português dividiam suas opiniões sobre aderir ou não ao Tratado de Berlim. De um lado, ministros em exercício, como Dom Rodrigo de Sousa Coutinho e Dom João de Almeida, ex-ministros e futuros condes de Linhares e das Galveias defendiam a continuidade da aliança com a Inglaterra (idem, ibidem).
Diante das pressões e da iminência de uma invasão francesa, António de Araújo e Azevedo, futuro conde da Barca, advogava pela aceitação do bloqueio e uma aliança com a França. Ambas as tendências, conforme relata Oliveira Ramos, possuía apoios nos círculos influentes da sociedade lusa, o que revela a existência de um debate mais amplo acerca da atitude que a corte deveria tomar.
A situação prolongou-se por cerca de um ano sem que Portugal aderisse definitivamente ao bloqueio imposto pela França. Em fins de 1807, Napoleão resolveu invadir o território português e, para tanto, assinou com a Espanha o chamado Tratado de Fontainebleau.
Esse acordo era necessário para que as tropas francesas chegassem a Portugal por território espanhol. Tratava-se de logística fundamental, visto que a marinha britânica, absoluta nas águas, controlava o Mar Mediterrâneo. Os termos do Tratado, assinado secretamente entre representantes dos dois países, estabelecia que, depois da conquista, o território de Portugal seria dividido entre ambos os signatários.
Mal sabiam Napoleão e Manuel de Godoy, o signatário espanhol do Tratado, que Dom João VI tinha uma estratégia inacreditável para impedir sua queda diante do império francês. Ao tomar conhecimento do plano de invasão de Napoleão, o príncipe regente Dom João VI angariou o apoio da Inglaterra para a transferência da corte portuguesa para sua principal colônia, o Brasil.
Muitos desaprovavam a decisão real. De acordo com Oliveira Ramos, ministros contrários à vinda da Família Real para o Brasil diziam que a atitude demonstrava falta de compromisso com o povo português e refletia uma decisão individual, a fim de proteger o monarca, mas que colocava a perder os “vínculos sociais que unem o vassalo ao monarca” (2009, p. 59).
Já os que defendiam a decisão da transferência da corte, tinham a convicção de que o objetivo imediato de Napoleão era se apossar dos territórios de Portugal, destituir o príncipe e firmar seu império ultramarino, destruindo a Inglaterra. “Os defensores dessa corrente afirmavam que o Príncipe, ao deixar Portugal, evidenciava coragem e porventura desencadearia um choque capaz de libertar a Europa de sua letargia” (DE OLIVEIRA RAMOS, 2009, p. 60).
Os preparativos da viagem da corte portuguesa começaram ainda em agosto de 1807. De acordo com Kenneth Light, Dom João VI mandou preparar as naus “Afonso de Albuquerque”, “Medusa” e “Conde D. Henrique”, que estavam em Lisboa. Ordenou, ainda, ao Esquadrão, que se ocupava de proteger a frota mercante do país de piratas no estreito de Gibraltar, voltar para o Tejo, a fim de acompanhar a transferência da corte que se realizaria. Em 22 de outubro, finalmente assinou o acordo com a Grã-Bretanha: “a nação que dominava os mares escoltaria a Esquadra portuguesa na sua jornada” (LIGHT, 2006, p. 5).
Na manhã do dia 24 de novembro de 1807, chegou ao conhecimento de Dom João VI um importante documento trazido pelo Capitão James Yeo, da corveta Confiance. Nele, estavam expressas as ameaças de Napoleão em relação à Família Real, que até então não havia obedecido ao bloqueio imposto.
As tropas de Napoleão avançavam no mesmo passo dos preparativos de Dom João VI. Em novembro, a fronteira terrestre de Portugal é invadida pelas tropas da França e Espanha (LIGHT, 2006).
“Era o momento crítico esperado por Dom João, pois com a fronteira terrestre invadida por exércitos da França e Espanha e a marítima sob bloqueio, suas alternativas encontravam-se exauridas. Tudo tinha sido feito – perante Deus, seus súditos e o mundo –, ninguém poderia acusá-lo de não ter, por todo o meio, tentado resguardar o seu país. O Conselho de Estado presidido pelo Príncipe Regente se reuniu naquela mesma noite e tomou a decisão de partir para o Brasil. A Esquadra estava pronta para a viagem, faltando apenas embarcar os passageiros e colocar a bordo as carruagens, arquivos, cofres, pratas e mil e uma coisas. Em suma, tudo aquilo necessário para transferir e estabelecer a capital do reino no outro lado do Atlântico. Nem a França nem a Espanha suspeitavam do que estava acontecendo. Os planos, organizados sob a iniciativa de D. João, estavam a um passo de serem realizados” (idem, p. 6).
Embarque da Família Real portuguesa para o Brasil.
Autor desconhecido.
A Família Real portuguesa embarcou no dia 27 de novembro de 1907. De acordo com Kenneth Light (2006), Dona Maria I, Dom João e os infantes Dom Pedro e Dom Miguel estavam na nau Príncipe Real. A nau Afonso de Albuquerque conduziu Dona Carlota Joaquina com suas filhas, infantas Dona Maria Isabel Francisca, Dona Maria d´Assunção, Dona Ana de Jesus e Dona Maria Tereza. Na Príncipe do Brasil, embarcaram a princesa viúva Dona Maria Francisca Benedita e a infanta Dona Maria Ana, ambas irmãs da rainha. Na Rainha de Portugal, vieram outras filhas de Dona Carlota Joaquina, as infantas Dona Maria Francisca de Assis e Dona Isabel Maria.
Apesar de o embarque ter ocorrido em 27 de novembro, a esquadra permaneceria parada no Tejo até o dia seguinte, quando o vento finalmente permitiu o deslocamento das embarcações. “Ao atravessar a barra do Tejo naquela manhã, a Esquadra portuguesa encontrou-se com o Esquadrão britânico. Este esperava velejando em linha de batalha. Após ter recebido o sinal “preparar para batalha” da capitânia, as naus tinham sido transformadas em máquinas de guerra, com seus marinheiros e fuzileiros guarnecendo as peças, prontos para o combate. Sir Sidney não estava disposto a correr qualquer risco” (LIGHT, 2006, p. 7).
Além das naus que levavam os membros mais importantes da corte, a armada lusa integrava, segundo Oliveira Ramos (2009, p. 61), oito naus, quatro fragatas, três brigues e uma escuna. Muitos navios deslocados do Brasil também acompanhavam a frota, assim como navios da marinha britânica. Ao todo, foram registradas pela armada britânica 56 embarcações que compunham a esquadra portuguesa rumo ao Brasil (LIGHT, 2006).
Apesar de todos os preparativos para a viagem, a travessia do Atlântico, nessa gigantesca transferência de pessoas e coisas entre um continente e outro, revelou suas adversidades. “Não havia lugar capaz para nobres, clérigos e plebeus. Carências de água, de alimentos, de roupas e remédios contrastavam com a proliferação de insectos indesejáveis, pois nem tudo se arranjara a tempo, por se julgar que não faltaria ocasião para os últimos preparativos, diz uma fonte coeva. Tempestades, calmarias e bom tempo levaram à perda de coesão da armada. Navios houve cuja viagem durou aproximadamente mês e meio, enquanto outros sofreram reparações de vulto em pleno Atlântico ou andaram perdidos cerca de três meses” (DE OLIVEIRA RAMOS, 2009, p. 61).
Representação da saída da frota Real em direção ao Brasil.
Domínio público. Wikimedia Commons
A Família Real chegou ao Brasil, especificamente em Salvador, no dia 22 de janeiro de 1808. A viagem revelou-se como uma “operação naval de grande envergadura” (idem, ibidem). A transferência da corte implicou no transporte de cerca de 10 mil pessoas, algo impensável para um momento em que as condições de navegação eram bastante desfavoráveis.
A Chegada de D. João VI à Bahia. Óleo sobre tela de 1952 (Crédito: Candido Portinari/Projeto Portinari)
Mesmo castigadas pelas tormentas de inverno, que afetavam a navegação no hemisfério norte, todas as naus chegaram ao Brasil. Segundo Kenneth Light, esse dado revela a qualidade dos oficiais e da construção dessas embarcações, fruto da experiência de vários séculos de navegações regulares entre os oceanos (LIGHT, 2006).
Logo que chegou ao Brasil, ainda em Salvador, Dom João decretou a abertura dos portos às nações amigas, colocando fim a três séculos de sistema colonial, ainda que “nações amigas”, naquele momento, se referissem basicamente à Inglaterra.
Já na capital, Rio de Janeiro, revogou os decretos que proibiam a instalação de manufaturas na colônia, isentou tributos à importação de matérias-primas destinadas à indústria, ofereceu subsídios para áreas diversas e incentivou o desenvolvimento de maquinaria para a produção industrial (FAUSTO, 2006, p. 122).
A chegada da corte ao Rio de Janeiro, ocorrida em 7 de março do mesmo ano, causou um imenso impacto social, político e econômico para a população da cidade, que, na época, possuía entre 50 e 60 mil habitantes.
Passagem de Sua Majestade, D. João VI, sob os arcos da Rua Direita (atual Primeiro de Março), em frente à Rua do Ouvidor.
Gravura de T. M. Hippolyte Taunay, 1817.
Domínio público, Biblioteca Nacional Digital.
Para se ter uma ideia do rearranjo necessário para a recepção de um contingente de estrangeiros tão grande, a administração colonial determinou o despejo de famílias inteiras de casas consideradas como moradias ideais para os membros da corte. Apesar de as requisições de habitações não serem novidade naquela época, quase sempre eram utilizadas para abrigar temporariamente tropas militares, e não para alojar civis, muito menos a corte portuguesa inteira e por um período indeterminado.
“O procedimento administrativo era o mais sumário possível: colocava-se na porta da habitação requisitada as iniciais “P.R.” (Príncipe Real), e a residência estava automaticamente requisitada… O vulgo, na fina ironia carioca, traduzia o “P.R.” como ‘ponha-se na rua’” (MACIEL, 2008).
De acordo com Maria Odila Leite, a “interiorização” da metrópole abalou não só as elites ligadas à Coroa – como aqueles que possuíam cargos administrativos, como de justiça, controle e tesouraria –, mas também os grupos sociais subalternos, como trabalhadores e escravos (2005).
Do ponto de vista político, a vinda da Família Real significava também uma transferência do centro da tomada de decisões oficiais. A partir de 1808, a política externa de Portugal, por exemplo, passou a ser decidida na colônia com a instalação do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no Rio de Janeiro (FAUSTO, 2006, p. 125).
Aos poucos, a chegada e o estabelecimento da Família Real foi causando profundas modificações. A Região Sudeste foi favorecida com o desenvolvimento e os privilégios carregados pela Coroa, acentuando ainda mais a crise das propriedades e territórios localizados nas regiões Norte e Nordeste do país, paulatinamente esquecidos pela administração portuguesa.
Dentre as transformações sociais, destacam-se as que afetaram o comportamento da população nas relações interpessoais. Com a criação da Imprensa Régia por Dom João VI, de onde surgiria a Gazeta do Rio de Janeiro, fomentou-se a circulação de novas ideias e o aparecimento de autores e intelectuais, comentados em rodas de discussão e reuniões de grupos vinculados à Coroa.
Essa medida, porém, submeteu as narrativas ao controle régio, por intermédio de uma comissão de censura encarregada de “examinar os papeis e livros que se mandassem publicar e fiscalizar que nada se imprimisse contra a religião, o governo e os bons costumes” (FAUSTO, 2006, p. 127).
Nesse contexto, também foram criadas instituições como o Jardim Botânico (1808), o Banco do Brasil (1808) e a Real Academia Militar (1810), além de duas Faculdades de Medicina, em Salvador e no Rio de Janeiro. Também foram trazidos à colônia artistas franceses célebres, como Nicolas-Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret, contribuindo enormemente para o registro e a representação da vida na corte, do trabalho escravo e da formação do Brasil.
Trazidos da metrópole europeia, os novos hábitos ditaram moda e práticas cotidianas. Além disso, a chegada e posterior permanência de parte da Família Real seriam responsáveis por fomentar planos urbanísticos que, mais tarde, priorizariam questões de higiene, infraestrutura e desenvolvimento da cidade.
Nas décadas seguintes, a expansão dessa lógica de vida e do desenvolvimento urbano e econômico do Rio de Janeiro marcariam a consolidação de novos meios de transporte, como o uso de bondes e barcas para deslocamento interno e para outras cidades.
Em 1815, Dom João VI uniu o Brasil e Portugal num só reino, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Essa decisão insere-se num contexto de crescente insatisfação, tanto interna como externa. Em Portugal, cresciam as pressões para que o rei retornasse ao seu país de origem e honrasse os compromissos com seu povo. Já no Brasil, afora o esgotamento com as imposições da corte e os laços de dependência, as províncias vivenciavam tempos instáveis, com a organização de movimentos influenciados pela emancipação de países na América e pela abolição da escravatura no Haiti.
João VI Rey de Portugal Brazil e Algarves [iconográfico] – [S.l.: s.n.], 1817.
Biblioteca Nacional.
Em suma, a transferência da corte portuguesa para o Brasil foi um empreendimento notável, de grandes proporções, que desafiou os limites técnicos e naturais impostos na época. Mesmo com todas as ameaças de Napoleão, Dom João VI não perdeu sua posição, nem seu reino, muito menos suas possessões além-mar.
Para o Brasil, contudo, a vinda da corte causou significativos impactos para a vida social, política e econômica, além de deixar marcas históricas substantivas. Essa decisão marcou, ainda, o processo de consolidação da independência do Brasil, profundamente atrelada ao paulatino rompimento das estruturas que sustentavam o chamado Antigo Sistema Colonial. A distância entre metrópole e colônia, além do monopólio comercial, que se rompe a partir de 1808, eram duas dessas estruturas.
Referências Bibliográficas:
CARVALHO, Amanda Lima dos Santos. “O Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte Portuguesa: planos, intenções e intervenções no século XIX”. Paranoá, n. 13, p. 55-63, 2014.
DA SILVA DIAS, Maria Odila Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos. Alameda, 2005.
DE OLIVEIRA RAMOS, Luís A. Do bloqueio continental à mudança da corte para o Rio de Janeiro. História: revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 10, 2009.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.
LIGHT, Kenneth H. A transmigração da Família Real de Portugal-1807-08. A Defesa Nacional, v. 92, n. 805, 2006.
MACIEL, Adhemar Ferreira. PR= Príncipe Real= ponha-se na rua. IHGMG. 2008.
NOVAES, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1995.