Cloraldino Severo – Privatização deve incluir riscos

Publicada originalmente na Revista Transporte Moderno n° 300 – janeiro de 1989 

Após ter dirigido o DNER e o Ministério dos Transportes e analisado várias propostas de privatização, o ex-ministro considera que nada mudou.

TM – O que o senhor acha da proposta do ministro José Reinaldo Tavares de privatizar a infra-estrutura dos transportes no Brasil?

Cloraldino – O país necessita revisar a extensão da intervenção do Estado na economia, mas nos transportes o Estado realiza tarefas que lhe são próprias e usuais, mesmo em países que praticam um modelo de capitalismo liberal. O Ministério dos Transportes não apresentou uma proposta objetiva das condições de privatização e isso é essencial para uma avaliação.

TM – Mesmo assim, o ministro diz que não há alternativas.

Cloraldino – Não concordo que não existam soluções fora da privatização, pois, de fato, existem muitas. Também não corresponde à realidade que países da Europa e América tenham concedido generalizadamente seu sistema rodoviário principal ao setor privado.

As rodovias nesses países são construídas e mantidas com recursos de diversas fontes, como impostos vinculados sobre consumo de combustíveis, de pneus, transferências governamentais, empréstimos interno ou externo e, em menor extensão, o pedágio. Mas a responsabilidade pela rodovia é sempre do Estado.

TM – Então o senhor não concorda com a privatização?

Cloraldino – Se privatizar for entendido como concessão do governo para financiar, construir e manter a estrada com recursos do pedágio, a minha resposta é não. Há mais de quinze anos tenho examinado propostas de privatização, como diretor geral do DNER e ministro de Estado, e todas foram recusadas porque eram eticamente inaceitáveis e não atendiam ao interesse público. Ao contrário, se constituíam em “negócios especiais”, onde os interessados propunham realizar investimentos de grande retorno para eles, com recursos do governo, assim não correriam riscos. Ora, isso não é capitalismo nem liberalismo, é assalto ao patrimônio público. Nenhum empresário aceitou concessão por quarenta ou cinqüenta anos com direito a cobrar pedágio, assumindo os riscos do negócio sem o aval do governo.

TM – Mas o senhor não acha que o governo deve arcar com o ônus dos serviços públicos?

Cloraldino – Tanto as rodovias quanto os portos começaram no Brasil como serviços explorados pela iniciativa privada, mas tiveram que passar para o Estado porque, no caso das ferrovias, só conseguiam ser rentáveis quando eram monopolistas. Com o advento do transporte rodoviário, deixaram de ser competitivas. Em todo o mundo, a ferrovia se mostra incapaz de fazer retornar o capital investido porque é um negócio que envolve grande contingente de funcionários com sindicatos fortes e que depende do Estado para fixar tarifas e importar componentes. No Brasil, só em alguns trechos de cargas tipicamente ferroviárias, como o transporte de minérios em Minas Gerais, se mostra altamente lucrativo. E não seria ético privatizar esse trecho, deixando para o contribuinte o ônus dos demais trechos antieconômicos.

TM – E nos portos, por que o governo interveio?

Cloraldino – Para que o país pudesse dar suporte a seu projeto de desenvolvimento nas décadas de sessenta e setenta, o governo teve que investir pesadamente na estrutura dos portos, pois os riscos, a baixa rentabilidade dos investimentos e os altos recursos exigidos não atraíam investidores privados. Também as propostas de privatização dos portos têm sido na base de “negócios especiais”, onde o governo tem de subsidiar os investimentos para viabilizar os lucros dos interessados – os bancos e as empreiteiras. Existem exceções, é verdade, como os terminais especializados e contratos de empresas portuárias com o setor privado para reequipar os portos. Isso mostra que é possível alcançar soluções construtivas para capitalizar os portos com recursos da iniciativa privada e que sejam mutuamente vantajosos.

TM – Seriam essas, a seu ver, as saídas?

Cloraldino – Sim, porque, embora existam alguns casos de auto-estradas na Europa com pedágios elevados, em grande parte dos países ocidentais as concessões não são generalizadas. Na maioria das vezes, são empresas estatais ou paraestatais, como temos aqui a Dersa, em São Paulo, que cobra pedágio.

TM – O senhor acha que a privatização beneficiaria as grandes empreiteiras?

Cloraldino – Se a exploração privada fosse o único caminho, sim. No caso de um sistema misto poderiam ser estabelecidas salvaguardas obrigando a participação eqüitativa no mercado, proporcional à capacidade técnica e financeira das empresas registradas.

TM – E o pedágio é suficiente para manter uma rodovia?

Cloraldino – Não, o pedágio é incapaz de cobrir simultaneamente os investimentos de restauração e a concessionária teria de buscar recursos no mercado financeiro a juros muito mais altos do que a União poderia obter junto ao Banco Mundial ou outras fontes. Além disso, os investimentos para restauração são diferenciados por trechos, região, Estado. Logo isso levaria à cobrança de pedágios diferenciados, o que tornaria onerosa a arrecadação. Pode ocorrer ainda que pequenos produtores venham a ser penalizados em determinadas regiões com elevados pedágios, criando injustiças fiscais e sociais, além de prejudicar economias de determinadas regiões.

TM – O senhor concorda com a privatização da construção das rodovias ao custo de US$ 200 mil por quilômetro?

Cloraldino – Não, porque o tráfego não seria suficiente para pagar sequer os custos da arrecadação. Basta recorrer aos postos de pedágio do DNER. No caso do acesso a um porto, por exemplo, o pedágio viabilizaria o investimento, mas a sociedade perderia. Por isso considero a solução via impostos sobre pneus e combustíveis mais justa e eqüitativa entre as diversas regiões e setores.

TM – E no caso dos portos?

Cloraldino – Entendo que tal é a complexidade da questão portuária e tamanha a sua importância para a sociedade brasileira, tantos e tão diversificados os interesses em jogo, que é necessário aprofundar o estudo do problema com ampla participação de todos os setores da sociedade para que o país possa chegar a um projeto de portos para os anos 90 e após o ano 2000.

Assim, o financiamento e a distribuição dos encargos, como decorrência desse projeto, deveriam ser divididos entre governo e iniciativa privada. Enquanto esse projeto não sai, creio que o melhor seria administrar o que existe de forma pragmática e solidária, criando-se garantia de remuneração para alguns investimentos essenciais, eventualmente privados, na impossibilidade de gastos públicos. Devemos discutir as prioridades, buscar a eficiência progressiva, estabelecer objetivos de resultados operacionais, econômicos e financeiros.

TM – Restam agora as ferrovias.

Cloraldino – Penso que se um empresário privado desejar construir uma ferrovia, com capital e riscos próprios, que não traga prejuízos à rede já existente, nem danos à natureza, nem ao patrimônio ou ao bem público, não há por que não autorizar sua construção. Porém se a proposta é a de se obterem incentivos fiscais, subsídios, conversão da dívida em investimentos e outras garantias governamentais, restando ao empresário uma parcela do custo – que, pelo fato de ele mesmo ser o construtor, ele mesmo poder fixar em índice mais alto ou mais baixo -, penso que isso não se enquadra em uma atividade estritamente privada. Nesse caso, caberia ao Estado examinar se esses recursos não encontrariam maior oportunidade de retorno e outras prioridades no setor. Acredito, com toda a certeza, que há necessidade de investimentos mais urgentes, mais prioritários e mais econômicos na malha já existente do que essa proposta.

TM – Qual sua opinião sobre as novas ferrovias: Norte-Sul, Ferroeste, Transnordestina, Leste-Oeste?

Cloraldino – Penso que não são essenciais no momento, que existem exigências críticas em termos de recuperação da malha existente, do material rodante e de tração e, principalmente, das ferrovias metropolitanas, social e economicamente prioritárias. Além do mais, a participação do governo em projetos de baixa prioridade desmoraliza toda a tentativa de uma política econômica austera que o momento exige.


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