Denisar Arneiro – Os bastidores da Constituinte

Publicada originalmente na Revista BR n° 263 – outubro de 1988

 

Desde rapaz, Denisar de Almeida Arneiro convive no meio associativo e sindical. Bancário, ele liderou em Barra Mansa (RJ) a primeira greve dos bancários que aconteceu no Brasil. Ao sair do banco, Arneiro recebeu uma indenização que foi aplicada na compra de um caminhão. Nascia aí a Transportadora Arneiro, hoje Transportes Sideral.

Anos depois, como líder no transporte rodoviário de cargas ele foi o primeiro presidente da Associação das Empresas de Transportes de Cargas de Barra Mansa, passando também pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Cargas da Guanabara e finalmente pela NTC. Em 1982, Arneiro decolou para a carreira política, candidatando-se a deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro.

Com 30 mil votos só em Barra Mansa, ele foi o candidato mais votado no Estado dentro de apenas uma cidade. Em 1986, repetiu a candidatura e foi eleito deputado constituinte. Na Constituinte foi dele a emenda para a criação do SEST e SENAT, além de mais 296 emendas propostas.

Com algumas decepções, mas com o senso de responsabilidade de fazer uma nova Constituição para o País, Arneiro foi um dos parlamentares que menos faltaram às votações. Segundo o serviço de processamento de dados do Congresso Nacional, Arneiro esteve ausente a no máximo 15 votações do primeiro turno. Quase um recorde, pois apenas 20 parlamentares conseguiram a mesma marca. O deputado conta nesta entrevista o que viu na Constituinte e a sua opinião sobre os novos rumos do País a partir da nova Constituição.

BT – Qual a diferença do seu primeiro mandato, de 1982 a 1986, para este em curso, como deputado constituinte?

Arneiro – Embora antes da Constituinte eu tenha sido deputado apenas uma vez, posso dizer com tranqüilidade que, como um simples congressista naquela fase procurei mais apresentar projetos de lei para melhorar o que existe no cotidiano, fazer discursos e reivindicações junto aos ministérios e ao presidente da República. Enfim, o congressista é mais um lobbista da prefeitura ou do Estado, procurando recursos para a sua região. No segundo mandato, já como constituinte, eu senti a necessidade de ficar lá dentro voltado quase que exclusivamente para os assuntos da Constituinte. Principalmente porque nós fizemos, na minha opinião, uma loucura, que foi partir do zero. Nós tínhamos a Constituição de 1946, a de 1967, e isso nos daria a condição de analisar essas Constituições e procurar o que estava dando certo para o Brasil e o que não estava. Tínhamos também um projeto já preparado pelo senador Afonso Arinos, de um “boneco” da Constituição. Mas partimos do zero, procurando junto ao povo, aos sindicatos, às associações, para que fizessem abaixo-assinados e encaminhassem idéias e sugestões para a Constituição. Trinta mil assinaturas tinham o direito de participar com uma emenda dentro da Constituinte. Isso foi uma loucura, porque de todas essas emendas, apenas uma foi transformada num artigo da Constituição. Emendas com um milhão de assinaturas não foram aproveitadas, só algumas coisas foram aproveitadas. No meu entender, foi uma espécie de irresponsabilidade a forma como nós começamos a fazer a Constituição.

BT – Durante a Constituinte, foi notável a presença dos grupos de interesses fazendo pressão sobre os parlamentares. Como deputado, qual era a sua posição, como se sentia sob a pressão desses grupos?

Arneiro – Eu me senti muito à vontade. Recebi no meu gabinete dezenas de lobbistas, dos banqueiros, dos empresários, dos sindicalistas, dos operários e de cada setor da economia brasileira. Eu me senti muito à vontade em recebê-los, mas procurei não me comprometer. A não ser com aqueles que vinham defendendo um princípio que era a minha filosofia. Quando era um lobbista de uma associação ou sindicato defendendo um ponto de vista diferente do meu, procurava ouvi-lo mais, para saber se ele trazia alguma coisa de novo. Eu não tive oportunidade de mudar de opinião. Sou um homem que foi para lá com as opiniões formadas a respeito do que eu deveria apoiar ou não. Ganhou quem conseguiu colocar o maior número de gente nas galerias. Os deputados, não sei se porque estamos próximos de uma eleição municipal, foram muito influenciados nas votações. Quem colocava mais gente na galeria, influenciava uma quantidade maior de parlamentares.

BT – O senhor acha, então, que os grupos de interesses tiveram muita força devido ao despreparo dos parlamentares para elaborar a Constituição?

Arneiro – Nós tivemos uma renovação de 65% do Congresso Nacional. Sessenta e cinco por cento dos constituintes são pessoas que nunca exerceram nenhuma posição no Senado ou Câmara Federal. Podemos dizer que 20% destes já tinham alguma experiência nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Mas os outros 35% eram totalmente neófitos em relação ao funcionamento da Casa. E no dia seguinte em que a Casa começou a funcionar eles já tinham uma Constituição para fazer. Eu considero que o lobby operário foi muito mais efetivo e objetivo que o lobby empresarial. O lobby, principalmente o da Federação da Indústria e da Federação do Comércio, colocou-se acima da realidade dos parlamentares. Essas federações davam almoços ou jantares em casas alugadas na região mais nobre de Brasília, convidavam parlamentares, faziam alguns discursos. Mas não queriam ter o trabalho de correr gabinete por gabinete, como faziam os lobbistas daqueles que não tinham condições de dar jantares e almoços. Esses procuravam deputado por deputado. O contato pessoal é muito mais efetivo que um contato coletivo. Por isso, a indústria foi fragorosamente derrotada nos seus desejos e reivindicações. Mas eles aprenderam bastante. Eles se consideravam muito importantes e não desciam aos gabinetes dos deputados, mandavam empregados conversar com eles. Não é dessa forma que se consegue alguma coisa. Quando se conversa com o empresário é diferente de falar com um empregado, o parlamentar se sente prestigiado.

BT – Como fica a sua posição no Congresso, sendo representante de um setor? Muda sua atuação em algum aspecto?

Arneiro – A minha atuação não mudou em nada. Já disse que desde o início eu tinha os meus pontos-de-vista firmados em relação à maior parte do que seria discutido. Quanto ao setor rodoviário, ao qual eu pertenço, eu já fui para lá preparado para defender seus interesses.

BT – O senhor apresentou um grande número de emendas à Constituição. O senhor tem ideia de quantas foram?

Arneiro – Eu apresentei 297 emendas no primeiro turno e 82 foram aprovadas pelo relator Bernardo Cabral. Se computarmos os documentos da Constituinte, verificamos que metade das emendas aprovadas pelo relator foi rejeitada pela Casa. E as rejeitadas por ele foram aprovadas pela Casa. O relator até se sentiu frustrado. Conversando com Bernardo Cabral, comentei que ele como relator estudou e recomendou cada emenda. Porém as recomendações não foram aceitas. Ele respondeu esperar que aqueles que não aceitaram suas sugestões tenham estudado como ele. Porque se não o tivessem feito nós não teríamos uma boa Constituição. E as minhas emendas se foram nessa profusão de incoerências. Algumas foram unidas a outras conforme orientação do doutor Ulysses Guimarães, criou-se a fusão de emendas, juntando uma série de emendas parecidas.

BT – Como foi sua participação na votação de artigos mais importantes ao setor, como a nacionalização das empresas de transportes, a definição de quem é a competência da legislação sobre trânsito e transporte e, também, a criação do SEST e do SENAT?

Arneiro – No problema da nacionalização, especificamente na Comissão temática, teve uma emenda apresentada por mim. Depois essa emenda foi englobada com outras, e não ficou específica do setor. No caso do SEST e SENAT nós defendemos com unhas e dentes. Achamos que esse era um direito líquido e certo; há mais de dez anos a questão vem sendo levantada em congressos do transporte rodoviário de carga. Eu apresentei uma emenda específica criando o SEST e o SENAT e infelizmente fomos derrotados porque também não tivemos tempo de trabalhar. Quando nós procurávamos os deputados, eles já estavam trabalhados pelo pessoal da Federação das Indústrias, não pelos empresários, mas pelos lobbistas. Eles pensavam que a nossa ideia era acabar com o SESI e SENAI, criando problemas maiores para o que já vem funcionando há 40 anos. Na verdade, não era isso, nós desejávamos participação mais efetiva naquilo para o qual contribuímos. Se no bolo do SENAI participam os transportadores, nós queremos a parte que nos cabe. Por quê? Dados do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) indicam que anualmente 50 mil pessoas morrem no Brasil em acidentes de trânsito. E estas 50 mil morrem em acidentes causados por caminhões e ônibus, isto é, veículos pesados. Se tivermos dentro da nossa Confederação recursos para criar escolas que ensinem ao motorista dirigir veículos pesados, temos certeza que o número de acidentes vai diminuir numa proporção que surpreendera o Pais num prazo de cinco ou seis anos. Havia uma outra aberração na Constituição que nós conseguimos suprimir através de emenda. No início, dizia que a União, os Estados e municípios teriam o direito de legislar sobre trânsito e transportes. Ora, se assim permanecesse no texto constitucional, criaríamos conflitos em todos os momentos em que se atravessasse a fronteira entre Estados. E se o Estado criasse barreiras, pedágios, o município também o faria. Nós criaríamos um verdadeiro caos no sistema rodoviário. Com uma emenda de minha autoria, eliminamos o Estado e o município. Então ficou tranqüilamente que só a União legisla sobre transporte. Isso ficou claro e límpido. O Brasil será um país com fronteiras estaduais e municipais que terão uma linha divisória imaginária, mas não uma linha efetiva, como iria acontecer.

BT – O senhor destacaria a participação de algum deputado em especial na Constituinte?

Arneiro – Eu prefiro não destacar a participação de ninguém, eu poderia cometer uma injustiça. Mas tenho algo a dizer. Se fizermos um levantamento, desde as subcomissões, as comissões temáticas, a comissão de sistematização, os dois turnos de votação, concluiremos que a média de comparecimento dos 559 parlamentares foi de 65%. Nós vamos ver que 35% não estavam presentes. Uma hora era um, outra hora outro. Eu me orgulho de dizer que me encontro entre os 20 ou 30 que estiveram presentes em todas as votações. E o serviço de processamento de dados do Congresso, Prodasen, está lá para confirmar nosso comparecimento. Outros parlamentares, que inclusive agora estão pleiteando serem prefeitos das capitais ou de suas cidades, deram pouco à Constituição, poucas vezes compareceram lá. No dia 4 de setembro houve um debate com os prefeituráveis do Rio de Janeiro. Um deputado assíduo, também candidato, dirigiu-se a outro que também é deputado, perguntando se ele governaria o Rio de Janeiro como havia participado da Constituinte. O eleitor deveria estar atento a esses homens, porque desculpe eu dizer, mas se o eleitor tivesse mais interesse pelo seu País e pela democracia, olharia com mais atenção os homens que ele manda para o Congresso. Eu queria dizer que 20 ou 30 foram altamente eficientes. Todo aquele que compareceu, 70% têm seu mérito. Eu fiz uma proposta ao doutor Paulo Afonso, secretário-geral da Câmara, que constasse no diploma de constituintes o número de comparecimento de cada um e o percentual de cada um. Ele respondeu que seria importante como estímulo, entretanto aquela é uma Casa política, com pessoas importantes, e deputados que pouco apareceram lá não se conformariam que constasse de seu diploma a ausência no que de mais importante se fez naquela Casa, que foi a Constituição.

BT – O senhor acha que hoje haveria alguém no setor em condições de assumir uma posição como parlamentar?

Arneiro – Eu seria muito indiscreto, mas sou obrigado a dizer. Pelo trabalho realizado na NTC e FENATAC, eu teria dois homens a destacar aqui em São Paulo. Eu não conheço outros Estados. Mas aqui em São Paulo nós teríamos o Oswaldo Dias de Castro e o Thiers Fattori Costa. Os dois ocuparam papéis de liderança no setor, são conhecidos em Brasília. E é importante que já tenham trânsito. Eu notei que por já ter sido presidente da NTC e conhecer muita gente no Ministério dos Transportes, isso me facilita muito. Nos Estados devem haver muitos candidatos. Foi uma surpresa o Romeu Luft, presidente do SETCERGS. Ele nos deu uma cobertura muito boa em Brasília, demonstrando um grande conhecimento junto a parlamentares de seu Estado. Poderíamos falar do Paraná, onde temos o Valmor Weiss, que é um político nato. Talvez eu tenha omitido alguém. Mas essas pessoas bem trabalhadas, o setor investindo neles, só teríamos a ganhar. O Congresso torna-se cada vez mais importante. Nós não podemos, como uma classe que está começando a mostrar que é forte, deixar de ter um representante legítimo lá dentro. Nós temos aqui em São Paulo o doutor Geraldo Vianna. Apesar dele não ser empresário, é tão ligado ao sistema que o conhece talvez até mais que um transportador. Ele seria um grande representante do setor.

BT – Depois de seis anos de mandato, atuando na Câmara Federal, o senhor acha que valeu a pena o esforço da vida pública?

Arneiro – As decepções foram maiores que as alegrias. Eu pensava que me elegendo conseguiria muitas coisas pela minha cidade, pelo meu Estado e principalmente pelo meu País. Mas chegando lá verifiquei que os interesses pessoais e de grupos estão muito acima dos interesses nacionais. Estou lançando aqui um libelo, em parte contra a classe política, mas não é contra todos os políticos, mas sim contra aqueles que fazem seus cartéis e não se importam em gastar o que for necessário. As decepções foram muitas. Mas valeu a pena a experiência. Eu me considerarei realizado ao sair de lá.

BT – O senhor pretende se candidatar novamente ao Congresso, em 1990, ou em 1992 tentar a Prefeitura de Barra Mansa?

Arneiro – Essa é uma pergunta que não se faz a um político. Eu tenho um compromisso com a minha família de não ser candidato a deputado federal. Mas se surgir um outro cargo eletivo ou executivo eu não vou recusar. Depois que se torna um homem público não se pode recusar determinadas incumbências. Eu não digo que abriria mão de uma posição no Executivo estadual ou federal que viesse ajudar o sistema e a Nação. eu me considero um homem preparado e com um espírito forte de brasilidade.

BT – E qual a sua opinião sobre a Constituição?

Arneiro – O grande mérito dessa Constituição é ter um artigo dizendo que dentro de cinco anos haverá uma modificação daquilo que não funcionou. Dentro de cinco anos haverá uma revisão, uma nova votação. Eu considero que nós temos tantas aberrações na Constituição que será necessária uma modificação realmente grande. Nós transferimos grande parte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para dentro da Constituição. Ao invés de uma Constituição enxuta, como eu esperava e defendi, fizemos uma Carta em que se desce a detalhes que deveriam ficar como lei ordinária. Tem um artigo que diz que o prefeito pode criar uma guarda municipal. Isso é de portaria de prefeito, não é nem competência de lei. Mas foi uma Constituição progressista. A classe operária, a classe trabalhadora, não pode reclamar dessa Constituição, ela trouxe muitas vantagens de imediato. Os aposentados, por exemplo, foram beneficiados e foi dada a garantia de que ninguém será mais massacrado na sua aposentadoria. Se você se aposentar com dez salários-mínimos, vai ter a garantia dos dez salários-mínimos. É um avanço muito grande. Voto aos 16 anos é um absurdo. Se o jovem é imputável, não tem outras responsabilidades, não é aceitável que ele vote. Outra coisa que eu achei um engodo foi o turno de seis horas de trabalho. Isto não é artigo próprio de Constituição, é uma conquista de acordos trabalhistas. A mesma coisa em relação à greve. Greve em todas as categorias e à vontade. Nós vamos entrar numa roda-viva de irresponsabilidades. Isso terá de ser corrigido, senão o Brasil vai entrar numa convulsão social muito grande. Mas algumas conquistas foram efetivas e válidas. É o caso do decreto-lei. O decreto-lei ter acabado é formidável, porque a economia nacional vai se estabilizar. Antes dormia-se com as decisões econômicas e financeiras determinadas pelo go- verno e acordava-se com tudo diferente. Agora não, pelo menos tudo sobre economia e finanças deve passar pelo Congresso. Há a licença-maternidade e a licença-paternidade. A licença-paternidade não devia constar de uma Constituição. Quando nós traduzimos nossa Constituição para o inglês, francês, eles vão rir, achar que nós estamos na era do índio. O índio fica em casa quando a mulher dá a luz A Constituição brasileira de hoje, em termos de censura é considerada a mais avançada do mundo. Ela vai ser só classificatória. Foi consagrado na Constituição o direito do mandado coletivo de segurança, que será usado pelos sindicatos e associações. Antes era individual. Como constituinte municipalista defendi muito na minha campanha dar maiores condições aos municípios e Estados. A era do “pires na mão” em Brasília tinha que acabar. Então eu acho que é todo poder ao município, porque ninguém mora no Estado ou Nação. E nós conseguimos que realmente fosse mudada toda a estrutura econômica, passando para o Estado e para o município maior poder que o da União.

 


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