Murilo Nunes de Azevedo – De olho no futuro

Publicada originalmente na Revista BR n. 267 – fevereiro de 1989

 

Quando, em 1964, o engenheiro e professor universitário Murilo Nunes de Azevedo decidiu publicar um livro alertando as autoridades para o perigo da dependência das importações de petróleo, a necessidade de uma maior integração entre os diversos modais do transporte e o uso mais intenso da energia elétrica na ferrovia, inúmeras vozes se levantaram para classificá-lo de visionário, esquerdista e até de defensor inconfesso de um modelo socialista de transporte. Essas acusações, aliás, mais tarde se transformariam em ações concretas, obrigando-o a uma aposentadoria depois de 32 anos de serviço na Estrada de Ferro Central do Brasil.

No entanto, bastou a eclosão do primeiro choque do petróleo, decretado em 1973 pela Opep, para que as previsões de Nunes de Azevedo viessem a se confirmar. Então, em 1977, o próprio governo resolveu procurá-lo: a pedido de Dirceu Nogueira, ministro dos Transportes, na época, ele foi convidado para atuar junto à área de planejamento de transportes, no Geipot.
Hoje, aos 68 anos, dividindo seu tempo entre as aulas que ministra no mestrado em transportes da Universidade Federal de Brasília e a paixão que cultiva por História Oriental, sobretudo a da Índia, Nunes de Azevedo espera apenas a definição de sua permanência nos quadros do Ministério, como resultado da extinção do Geipot, para se decidir exclusivamente pela vida acadêmica. Em meio aos livros, projetos e recortes de jornais que entulham sua sala, no prédio do DNER em Brasília, Murilo Nunes de Azevedo recebeu Brasil Transportes para falar de suas ideias.

Brasil Transportes – Na sua opinião, qual deveria ser a estrutura dos transportes no país?
Murilo Nunes de Azevedo – Os transportes de longa distância deveriam estar circulando por linha de menor resistência, prioritariamente; ou seja, meios que permitam menor custo por melhor rendimento. Os percursos longos, sempre que possível, deveriam ser feitos por ferrovia ou hidrovia. Ao sistema rodoviário, que é dinâmico, cabe a função de interligar os diversos sistemas, dentro de um projeto intermodal.

BT – Como adequar a malha ferroviária brasileira a esses planos?
Azevedo – Seria necessário reconstruir muitos trechos do atual sistema e realizar a expansão de pelo menos 20 mil quilômetros de vias. Pela extensão do país, o ideal é que pudéssemos contar com 50 mil quilômetros de linhas eficientes. O que se tem hoje é um arquipélago. Existem pequenos sistemas funcionando no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina; um sistema maior operando na região Sudeste e uma pequeníssima ilha no Nordeste e no Norte do país, sem nenhuma significação.

BT – E qual seria o ideal?
Azevedo – O correto é que existisse uma interligação dessas ilhas: um sistema interligaria as regiões Sul e Sudeste e outro uniria o Sudeste ao Nordeste.

BT – É por isso que o senhor defende a construção da ferrovia Norte-Sul?
Azevedo – É evidente que sim. Há mais de 100 anos que se preconiza a construção dessa ferrovia. É através dela que se pretende fazer o escoamento da produção agrícola do Brasil Central para o porto de São Luis, no Maranhão, que além de permitir a atracação de navios de até 300 mil toneladas é o que está mais próximo dos países importadores de alimentos, resultando no barateamento do frete.

BT – O mesmo raciocínio se aplica à ligação Leste-Oeste?
Azevedo – Sim. Essa é uma outra visão do Brasil, que permitiria atender à exportação de soja pelos portos de Santos e Tubarão.

BT – E onde entra o transporte rodoviário de carga?
Azevedo – É importante levar em consideração que o transporte rodoviário não poderá, no futuro, escoar toda a produção de alimentos. Estamos vivendo um ponto de mutação genética no país. O pior é que estamos com os pés no ar, em conseqüência da enorme dívida que possuímos. Mas acredito que deverá nascer uma consciência da necessidade de mudança, que vai partir muito do setor rodoviário.

BT – De que maneira?
Azevedo – A sobrevivência do setor rodoviário depende dessa mudança. É impossível continuar crescendo, mantendo os mesmos índices de hoje, sem que haja uma renovação de base. Se for mantida a atual distribuição por modal, onde o rodoviário participa com 65% do total das cargas transportadas, em 30 anos as rodovias terão de escoar uma produção que irá de 700 bilhões a um trilhão de toneladas por ano. Um número muito superior ao que os Estados Unidos transportam hoje.

BT – Por que então o governo não investe maciçamente na ferrovia?
Azevedo – Primeiro pela falta de recursos. O Brasil não tem condições de fazer investimentos na infra-estrutura, por força da elevada dívida externa. Depois, porque os sucessivos governos têm uma visão muito imediatista. Quase ninguém leva em conta que nos próximos 30 anos nossa população irá no mínimo se multiplicar, ocupando os espaços vazios que o país possui. Por isso é preciso planejar, ter uma visão de longo prazo.

BT – Isso sem contar o crescimento da população mundial e a perspectiva de o Brasil se transformar num grande exportador de grãos …
Azevedo – É verdade. Nós não podemos esquecer que até 2030 o mundo deverá passar de 5 para 15 bilhões de habitantes, segundo cálculos da Unesco. Isso significa uma necessidade maior de alimentos e não serão as 70 milhões de toneladas de grãos que produzimos que vão dar de comer a 300 milhões de habitantes – sem falar na exportação. Não é por outro motivo que o Japão, que vive sempre o amanhã, está vendo com muito bons olhos a região do Cerrado, no contexto da produção agrícola. Para se ter uma idéia, eles já investiram mais de um bilhão de dólares nessa região, pois sabem que no futuro as zonas agrícolas mundiais irão se reduzir ao Brasil Central e à Austrália.

BT – Os recursos para investimentos na infra-estrutura são, no entanto, escassos. Como resolver essa questão?
Azevedo – O impasse entre a necessidade de altos investimentos e a falta de recursos pode ser resolvido por meio de uma série de acordos financeiros, até com outros países interessados. É o caso, por exemplo, do próprio Japão, da União Soviética, que já estuda investimentos em base de estrutura ferroviária. Existem outras fontes que podem vir de áreas internacionais ou da iniciativa privada, como a concorrência que o Ministério dos Transportes está lançando para a construção de um trem de alta velocidade entre São Paulo e Rio.

BT – Essas saídas não contribuiriam para aumentar a dívida externa?
Azevedo – A forma mais adequada de conseguir esses recursos sem ônus e sem aumentar a dívida externa está na utilização desse transporte, vinculando o empréstimo à exploração. É uma mina de ouro explorar a ligação Rio-São Paulo com trens de alta velocidade, que cobririam esse percurso em apenas três horas.

BT – Como a iniciativa privada nacional poderia se engajar nesse esforço?
Azevedo – Se o governo oferecer a infra-estrutura das ferrovias que demandam altos custos, a iniciativa privada terá interesse em investir. O Olacyr de Moraes, por exemplo, está interessado em colocar o dinheiro da soja na ferrovia Leste-Oeste porque sabe que sua produção será inviabilizada se essa ferrovia não existir. Podem haver outros casos como o dele. Mas tudo isso tem que ser estudado, e justamente nesse momento o governo extingüe os órgãos de estudo e planejamento dos transportes.

BT – Por falar nisso, como é que o senhor vê o fim do Geipot e do IBTU?
Azevedo – É como uma volta ao passado, para quando a ciência do transporte, hoje ensinada em universidades do mundo todo, começava a nascer. O Geipot, por exemplo, fazia estudos abrangentes sobre o setor e suas relações com o macrossistema econômico, além de planos diretores modais, estudos de viabilidade técnico-econômica, integração dos diferentes módulos, formulação de estratégias políticas, análise de correlacionamento com o meio ambiente … Todas essas atividades e inúmeras outras acabaram extintas por um decreto apressado, que não levou em consideração esses fatores.

BT – Nesse contexto, de que forma o senhor vê o Plano Verão?
Azevedo – Como fruto de interesses de órgãos internacionais como o FMI e o Banco Mundial, que curiosamente comandam a “enorme dívida impagável”, na expressão do próprio presidente Sarney. A fórmula desse sistema é sempre a mesma: reforma administrativa, demissão de funcionários, privatização. Essa cantilena é conhecida.

BT – Qual seria então a saída?
Azevedo – Há uma consciência nova nos países do Terceiro Mundo, manifesta no encontro de Caracas, que é a necessidade de uma ação coletiva dos países devedores. Nesse mundo a sobrevivência de todos depende de cada um. No caso brasileiro, os transportes são essenciais à vida nacional, pois são eles que dão vida a todo o organismo produtivo do país. Estão presentes na vida social, econômica, cultural. E não podem ser relegados a segundo plano por meio de medidas simplistas como a extinção de empresas fundamentais para o planejamento do setor.

BT – Que solução o senhor apontaria?
Azevedo – Acho que deveria ser criado um organismo que reunisse as funções do Geipot e do IBTU, algo como um Instituto Nacional de Transportes, que coordenasse esse sistema e mantivesse sua atuação. A própria Constituição diz que o planejamento dos transportes é missão do governo. Para mim existem duas maneiras de aprender: uma pelo conhecimento e outra pela ignorância. E estamos indo pelo caminho da ignorância, tocados pelas circunstâncias, sendo levados a uma ação heroica para produzir uma solução coletiva.


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