Ano: 1866

Navegação no Rio Amazonas

O Rio Amazonas compõe o que, atualmente, é chamado de “Bacia Amazônica”, um sistema que pode ser definido como uma parte do relevo abastecida por um rio principal, seus afluentes e subafluentes. De imensurável importância para o desenvolvimento nacional em áreas como a produção alimentar, a navegação, a indústria química, a botânica, o desenvolvimento industrial e a geração de energia elétrica, a Bacia conforma um dos principais sistemas hidrológicos do mundo.

Ela é responsável por drenar cerca de 6 milhões de km2 de água, totalizando cerca de 15% do volume de água doce que desagua nos oceanos em todo o mundo. De acordo com Rodrigo Cauduro Dias de Paiva (2012), porém, a importância da Bacia vai muito além da sua extensão e do volume de suas águas.

Em primeiro lugar, os processos hidrológicos relacionados a esse ecossistema podem exercer grande influência no clima, tanto em escala global quanto nacional, além do ciclo global de carbono (PAIVA, 2012, p. 2). A Amazônia abriga uma das maiores florestas tropicais do mundo e um complexo ecossistema, o que demanda ações para seu equilíbrio e preservação.


Bacia do Rio Amazonas. Kmusser – Own work using Digital Chart of the World and GTOPO data.

A Bacia também é de suma importância para a geração de energia elétrica. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética, vinculada ao Governo Federal, mais de 65% da energia disponibilizada no Brasil vêm de usinas hidrelétricas, o que evidentemente depende do curso e do volume de água dos rios que compõem a Bacia (EPE, s/d).

Por fim, a conservação dos rios e do ecossistema referente à Amazônia é imprescindível para o equilíbrio ambiental, evitando secas e cheias desproporcionais, bem como os impactos negativos na população amazônica, dependente dos recursos hídricos para produção de alimentos, produção de energia elétrica e transporte (PAIVA, 2012, p. 2).

Para se ter uma ideia do tamanho e da importância da Bacia Amazônica, vale registrar que ela abrange uma dimensão territorial de aproximadamente 7 milhões de km2, compreendendo parte do território de oito países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

De sua área total, cerca de 3,8 milhões de km² encontram-se no Brasil, abrangendo os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Com potencial hídrico, energético e alimentar, a Bacia Amazônica é composta pelo Rio Amazonas, o maior e mais volumoso rio de água doce do mundo, e é formada por mais de 1.000 afluentes oriundos de diferentes países.

Por estarem em ambas as margens do Rio Amazonas, os afluentes colaboram para manter o grande volume de vazão. Os principais rios que compõem a Bacia, além do Amazonas, são: Rio Madeira; Rio Xingu; Rio Trombetas; Rio Branco; Rio Purus; Rio Tapajós; Rio Içá; Rio Japurá; Rio Jari; Rio Javari; Rio Tarauacá; Rio Itacuaí e Rio Iriri.

A existência de afluentes nas duas margens fez com que a Bacia fosse dividida em duas regiões. Uma delas é chamada de Bacia Amazônica Oriental, de aproximadamente 1,5 milhão de km2 e que abrange os estados do Acre, Roraima, Rondônia, Amazonas, norte do Mato Grosso e Pará (MINFRA, 2014). Seus principais rios são Rio Branco; Acre; Solimões; Amazonas; Tapajós; Teles Pires; Xingu; Trombetas; Jari; Madeira; Guaporé; Guamá; Capim; Negro e Pará. Também são considerados integrantes dessa região os trechos do Rio Amazonas entre Belém e Manaus, onde foram incluídas as cargas com origem ou destino em Macapá, Porto Velho, Santarém e Guamá-Capim.

Já a Bacia Amazônica Ocidental possui 2,4 milhões de km2 e abrange os estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. Seus principais rios são o Amazonas, Solimões, Juruá, Tefé, Purus, Madeira, Negro e Branco. São considerados integrantes da parte ocidental da Bacia os rios Solimões, no trecho Coari e Manaus, e trechos do Madeira.

Segundo o Ministério da Infraestrutura (2014), o transporte hidroviário pela Bacia Amazônica, em suas duas partes, enseja grande importância econômica e social, sobretudo por causa da carência de rodovias e da abundância de vias navegáveis.

Dependem da navegação por essa Bacia tanto o transporte de pequenas cargas e passageiros, como o de maior vulto, isto é, de cabotagem ou de longo curso, caso em que são utilizadas grandes embarcações e portos classificados como marítimos, como Vila do Conde e Manaus (MINFRA). Todas as atividades, desde as operações econômicas de maior envergadura até as de subsistência, dependem da navegação por esses rios.

O MINFRA sublinha que o transporte e a comercialização de pequenas cargas em grandes quantidades sobressaem, dado o atendimento “às necessidades das populações ribeirinhas, além daquele que é feito de forma unitizada em carretas e contêineres pelo sistema conhecido como ro-ro caboclo”.

Ro-Ro é a sigla utilizada para definir os navios cargueiros Roll on-Roll off, que, na tradução literal, significa “rolar para dentro – rolar para fora”. O navio Ro-Ro é inteiramente fechado, dele saem e entram os veículos ou a carga sobre um sistema de transporte rolante. “É como se fosse um grande estacionamento vertical com várias rampas internas onde, na maioria das vezes, é possível ajustar a altura dos andares de acordo com o tipo de carga” (FAZCOMEX, 2021).

O sistema Ro-Ro caboclo é uma versão adaptada das embarcações Roll on-Roll off. Consiste em “barcaças” de baixo, onde as carretas são colocadas por um cavalo-mecânico para seu transporte sobre as águas. Ao chegarem em seu destino, as carretas são atreladas a novos cavalos-mecânicos e seguem percurso.

As cargas de transporte mais frequentes na Bacia Amazônica são os granéis líquidos e sólidos, como os derivados de petróleo e os grãos, embora por ela também transitem, em grande quantidade, cargas destinadas ao polo industrial da Zona Franca de Manaus (matérias-primas e insumos) ou dela provenientes (produtos acabados).

Os portos e terminais que atendem à navegação nessas duas partes da Bacia são, do lado Oriental, Belém, Santarém, Óbidos, Parintins, Itacoatiara e Manaus; no lado Ocidental, os portos e terminais da Petrobras, e distribuidoras de gás, como a Fogás e Amazongás.

Hoje, a organização da navegação e do conhecimento hidrográfico e geográfico do Rio Amazonas e da Bacia Amazônica é o resultado de séculos de estudo, exploração e desenvolvimento regional. Apesar de a Região Amazônica ter sido tardiamente incorporada ao projeto de nação de que se sublinhou desde a independência, sua importância para o desenvolvimento social e econômico já era reconhecida e exaltada desde os primeiros tempos da colonização.

Em Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, Padre João Daniel, missionário da Companhia de Jesus, descreve as maravilhas que encontrou durante sua missão evangelizadora pelo território do Rio Amazonas e seus afluentes (SIEWIERSKI, 2008). Com o objetivo da propagação da fé católica, mas também para sanar a curiosidade em conhecer o “outro”, ou seja, o nativo, a obra apresenta-se como uma fonte de conhecimento sobre um território vasto, complexo e desconhecido.


Frisch, Albert Christoph, 1840-1918. “Alto Amazonas ou Solimões (du Brésil)”. [Iconográfico]: Tefé ou Ega (rive droite), 5.me Station des bateaux à vapeur, chef-lieu de la Comarca, 800 habitants, Fondé en 1759. Imprenta Amazonas: [s.n.], [ca. 1865]. Acervo Digital da Biblioteca Nacional. 

Padre João Daniel partiu para o Brasil em 1741 e, 11 anos depois, começou seu trabalho como missionário entre os indígenas da Amazônia (idem, p. 18). Em 1757, foi deportado para Portugal por determinação do Marquês de Pombal, que, naquele momento empreendera uma política de secularização das políticas coloniais oficiais. A obra do Padre João Daniel, uma coletânea de manuscritos produzidos entre 1757 e 1776, é o resultado deuma coleta de dados e um relatório de sua missão como membro da Companhia de Jesus.

O tesouro encontrado pelo Padre João Daniel refere-se justamente à Amazonia, sua geografia, povos, fauna, flora e riquezas. Apesar de ter sido escrito no século XVIII, durante sua missão, os volumes de sua obra, em conjunto, só foram publicados em 1976, quando a Biblioteca Nacional decidiu reunir todas as partes conhecidas do Manuscrito.

Padre João Daniel, já naqueles tempos, viu nas imensas e volumosas águas do Rio Amazonas um “personagem da história e da geografia”:

“E com o grande peso das suas águas corre o Amazonas para o mar tão ufano, e soberbo, que faz recuar as suas águas por muitas léguas, bem conhecidas, por conservar doces as suas águas, e de que os mareantes fazem aguada, mas finalmente cede ao grande Netuno o principado do mar, contente de ser ele o monarca dos rios” (DANIEL, I,58, apud SIEWIERSKI, 2008, p. 31).

Sobre as afluentes do rio, o Padre relatou:

(…) só tratarei do grande rio Amazonas, que cortando bem pelo meio da Equinocial este Novo Mundo, o divide igualmente em meridional e setentrional, ficando-lhe nas cabeceiras o estreito ou istmo de Panamá, de só trinta léguas, pequeno espaço, que impedindo-lhe a comunicação com o mar Pacífico, constitui e faz comunicáveis uma e outra América, repartidas igualmente em duas grandes penínsulas pelo Amazonas” (I, 41, apud p. 28).

Padre João Daniel observou a importância do Rio Amazonas e de seus afluentes para a vida e a sobrevivência dos indígenas que ali habitavam. Mais do que isso, viu, naquelas águas, um vasto potencial de geração de riqueza e de desenvolvimento social e econômico.

Essas características foram notadas pelos administradores do Império brasileiro e, a partir da independência do Brasil, a região do Amazonas e da Bacia Amazônica passou a ser palco de uma série de disputas que incluíram a discussão sobre a internacionalização da navegação, o controle territorial e a necessidade de incorporação da província ao conjunto do império.

A questão da navegação no Rio Amazonas remonta a assinatura do Tratado de Madri, de 1750, no qual Portugal e Espanha firmaram acordo para estabelecer a posse de regiões da América do Sul e apaziguar os conflitos entre os países principalmente na região do Rio da Prata e em localidades como a Colônia do Sacramento e Sete Povos das Missões, localizado a oeste do Rio Grande do Sul, onde os brasileiros tinham criações de gado.

A assinatura do Tratado resultou na cessão da Colônia de Sacramento por parte de Portugal, além de um recuo das pretensões desse país sobre o estuário do Prata, em troca da posse definitiva das regiões que atualmente compreendem o estado do Rio Grande do Sul, partes de Santa Catarina e Paraná, além do atual Mato Grosso do Sul. Por fim, foi garantida a Portugal a posse de uma imensa região compreendida entre o Alto-Paraguai, o Guaporé e o Madeira de um lado, e o Tapajós e Tocantins do outro.

De acordo com Otávio Ribeiro Chaves (2014), a assinatura do Tratado foi fundamental para garantir o controle do chamado “vale amazônico”, “garantindo a defesa daquele território diante da possibilidade de investidas de franceses, holandeses, espanhóis e ingleses” (idem, p. 219). Isso consolidou a condição colonial da recém-criada província Mato Grosso, além do controle administrativo e político por parte da coroa no Estado do Grão-Pará e Maranhão.

“Esperava a Coroa, a partir do Tratado de Madri, dar continuidade à reorganização político-territorial iniciada no reinado de D. João V, delimitando as fronteiras de sua possessão americana, de modo a prover esses espaços com população e tropas militares e propiciar o incremento de atividades produtivas e comerciais, visando garantir a soberania portuguesa nessas dilatadas regiões” (CHAVES, 2014, p. 219).

Apesar dos esforços da coroa portuguesa, durante a segunda metade do século XVIII eram muitos os obstáculos enfrentados para povoar e desenvolver a Região Amazônica. Dentre eles a escassez de mão de obra, a vastidão geográfica e as dificuldades de deslocamento.

A navegação pelos rios do que hoje é conhecida como Bacia Amazônica também era questão problemática na época. De acordo com Victor Gregorio (2008), durante o período colonial ficava a cargo do país detentor das margens dos rios decidir sobre sua navegação. Com a assinatura do Tratado de Madri Portugal manteve, portanto, fechada a navegação pelo Amazonas, o que mostra que, naquele período, era mais importante a posse do curso do rio do que o direito de navegar ou não pelas suas águas (idem, p. 12).

Nesse sentido, em grande medida, não só garantir a posse, mas também a proteção das águas contra países invasores era prioridade para a coroa portuguesa. Exemplo desse pensamento é o fato de que a navegação pelo roteiro fluvial entre os rios Madeira e Guaporé era proibida desde 1733. Vale sublinhar que o rio Madeira é um rio da bacia do rio Amazonas que banha os estados de Rondônia e do Amazonas, sendo um dos afluentes principais do Rio Amazonas. Dele, nascem os rios Mamoré e Madre de Dios.

Já o Rio Guaporé, conhecido na Bolívia como Rio Iténez, é um curso de água da bacia do Rio Amazonas, no Brasil e na Bolívia. Banha os estados de Mato Grosso e de Rondônia e os departamentos bolivianos de Santa Cruz e Beni, servindo de divisa entre os dois países. Sua foz ou desembocadura é justamente o rio Mamoré.

“A navegação pelo roteiro fluvial Madeira/Guaporé foi proibida pelo Alvará de 27 de outubro de 1733, o que foi confirmado pela Ordem Régia de 1737, que proibiu qualquer contato entre Pará e Mato Grosso.  Essa interdição visava evitar o contrabando de ouro, o comércio com os espanhóis e o despovoamento do Pará diante dos novos achados auríferos. No entanto, a provisão de 14 de novembro de 1752, que chegou à Capitania dois anos depois, liberou o comércio por essa rota fluvial.  Nesse momento, o trânsito do lado português foi considerado um meio de impedir o ir e vir dos jesuítas espanhóis que procuravam se estabelecer no território luso” (JESUS apud CHAVES, 2014, p. 222).

Os avanços em termos jurídicos e políticos sobre a navegação pelo Amazonas e seus afluentes ganhou contornos mais específicos durante o século XIX. Em primeiro lugar, vale mencionar que a questão é influenciada por mudanças internacionais e geopolíticas. Victor Gregorio (2008) destaca que a Revolução Francesa de 1789, bem como os novos tratados que marcaram a restauração monárquica e delimitaram novas fronteiras depois do fim do Império Napoleônico, em 1815, tem relevância fundamental formação dos Estados-nação modernos e na maneira de seus representantes encararem a internacionalização dos cursos de rio.

Essas questões também estão relacionadas com as mudanças históricas promovidas pelo fim dos grandes impérios coloniais e do sistema capitalista mercantilista. Ao passo que as sociedades europeias se modernizavam com a Revolução industrial, novas formas de produção e comercialização, os processos de independência da América Espanhola e Portuguesa concluem o soterramento de um sistema econômico baseado no monopólio comercial.


Albuquerque, Luiz R. Cavalcanti (Luiz Rodolpho Cavalcanti), 1847-1915. Mappa da Amazonia [Cartográfico]: demonstrando a navegação regular a vapor . Imprenta Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional, [1894]. Acervo Digital da Biblioteca Nacional.  

Os novos ventos liberalistas e capitalistas europeus demandavam a abertura de novos mercados e a possibilidade de transitar por novas rotas, fossem elas internas ou internacionais. Nesse sentido, era fundamental que os países recém-criados pelos processos de independência incorporassem a nova lógica produtiva e comercial, garantindo a possibilidade de utilização de seus cursos fluviais e marítimos para o desenvolvimento de novos mercados.

Além disso, vale destacar que a Revolução Industrial foi acompanhada pelo desenvolvimento dos motores e máquinas a vapor, o que resultou na ampliação da produção industrial. Essa nova realidade demandava também novos sistemas de transporte, como o trem e o navio a vapores, capazes de escoarem as mercadorias na mesma proporção.

Em consonância com esse processo, e fortemente pressionado pelas demandas externas, expressadas principalmente por Estados Unidos e Inglaterra, o Brasil começa a discutir mais profundamente a navegação pelas águas do Amazonas e seus afluentes a partir de 1830. Esse contexto esteve marcado pela tardia adesão da província do Grão Pará à Independência, o que aconteceu em 1823, e pelas pressões do Império para a integração dessa região ao restante do território.

Dessa forma, durante esse período, acontecem os primeiros debates que refletiram as tentativas de inserir a navegação a vapor no rio Amazonas através de empresas de capital estrangeiro.

Essa discussão foi influenciada, segundo Victor Gregorio, pelos avanços promovidos pela navegação a vapor em outros países como Inglaterra e Estados Unidos. “[…] Essa nova tecnologia tornava as viagens mais curtas e seguras, libertando os transportes de longa distância de determinantes naturais que obstruíam seu maior desenvolvimento, como a necessidade de ventos favoráveis para que a viagem ocorresse da forma mais breve possível. Ainda que inicialmente de custos mais elevados que sua congênere realizada a vela, a navegação a vapor acabou conquistando espaço não apenas por tornar as viagens mais curtas, mas também por suportar um volume maior de carga, com a vantagem de apresentar risco muito menor de perdas pelo caminho” (2009, p. 186).

Nesse sentido, o pesquisador destaca que o primeiro projeto para introduzir a navegação a vapor pelo Rio Amazonas nasceu em Nova York e foi apresentado em 1826. O objetivo era criar uma companhia de navegação, a Amazon Steam Navigation Company, de propriedade da firma Le Roy, Bayard & Co, que transitasse pela região e aproveitasse a tecnologia a vapor para o transporte de cargas e passageiros. O projeto foi entregue para o então ministro Silvestre Rebello, que assinou o acordo e prometeu proteção para que um navio a vapor descarregasse suas mercadorias no porto de Belém e seguisse viagem rio acima, até os portos das demais nações. No entanto, o navio foi impedido de transitar pelo território do Pará, o que ocasionou um processo de indenização requisitado pela Companhia e pago pelo governo brasileiro anos mais tarde (GREGÓRIO, 2009). O acordo também foi rechaçado pelo Parlamento brasileiro.

Esse episódio confirma, de acordo com Gregório, uma ideia que perdurou durante muito tempo sobre a navegação na Bacia Amazônica. “Segundo essa concepção, a navegação a vapor era defendida unanimemente como algo positivo para a região norte do País, desde que praticada sem interferência de capitais estrangeiros, entendidos como prejudiciais a interesses estratégicos brasileiros. Estes diziam respeito à manutenção da soberania brasileira sobre a Amazônia, território de grande potencial econômico, que, por isso mesmo, despertava a cobiça das principais potências da época” (2009, p. 188).

Apesar dos entraves políticos, cabe registrar a primeira viagem num navio a vapor pelo Rio Amazonas, realizada em 1843 a bordo do navio Guapiaçu (ou Guapiassu), comandado pelo capitão-tenente da Armada Nacional Imperial, José Maria Nogueira.

De acordo com Eugênio Marques Frazão: “A experiência obteve pleno êxito, porque o consumo de lenha não “destruiu” a floresta, nem as fagulhas desprendidas das “caldeiras do demo” espalharam incêndios, quer nos navios próximos, quer nas construções ribeirinhas, quer, muito menos, na mata” (1966, p. 136).

A questão da navegação na Amazônia conheceu mudança mais profunda a partir da década de 1850, quando a região do Alto Amazonas se tornou uma província autônoma, confirmada segundo a Lei nº 582, de 5 de setembro de 1850, separando-se definitivamente da província do Grão-Pará.

A essa decisão sucedeu a promulgação da Lei no 586, de 6 de setembro de 1850, que se tratava de uma lei de orçamento autorizando: “A estabelecer desde já no Amazonas, e aguas do Pará a navegação por vapor, que sirva para correios, transportes, e rebocagem até as Provincias visinhas (sic), e territórios estrangeiros confinantes, consignando prestações a quem se propuser (sic) a manter a dita navegação ou empregando embarcações do Estado”.

Roberta Kelly Lima de Brito (2017) destaca que, apesar da existência do marco legal para empreender a navegação a vapor no rio Amazonas, o primeiro presidente da Província do Amazonas, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, descreveu em relatório de abril de 1852, que a navegação realizada por embarcações a vela e canoas era custosa e penosa, visto que as enchentes e correntezas revelavam os perigos e dificuldades para a navegação. A permanência dessa atividade prejudicava, portanto, o desenvolvimento social e econômico da região.

A primeira iniciativa para tornar mais eficiente a navegação pelas águas da Bacia Amazônica teve participação crucial de Irineu Evangelista de Souza, o futuro Barão de Mauá. A Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas foi criada através de contrato formalizado entre Mauá e o governo imperial, oficializado através do Decreto no 1.037, de 30 de agosto de 1852.

Assim, “estava prevista a concessão, por parte do governo, de uma subvenção pecuniária mensal, que seria acrescida de um privilégio de exclusividade na realização da empresa que deveria vigorar pelos próximos trinta anos. Além disso, seria realizada a cessão de terras para a fundação de sessenta colônias nas margens do rio, a serem habitadas por indígenas ou imigrantes estrangeiros, além de um terreno no qual deveria ser construído um dique na cidade de Belém. Em contrapartida, Irineu Evangelista de Souza se comprometia a fundar uma companhia que nunca operasse com capital inferior a mil e duzentos contos de réis, que mantivesse linhas regulares de vapores e que se comprometesse a fundar e a manter as colônias nas margens do Amazonas, tão logo obtivesse do Poder Legislativo autorização para isso […]. Sobre essas bases, foram inauguradas as primeiras linhas regulares de vapores do rio Amazonas, em janeiro de 1853, mantidas pela Companhia de Navegação e Comércio do Rio Amazonas” (GREGORIO, 2009, p. 195-196).

Em agosto de 1853, porém, o contrato foi revisto e alterado, após intensos debates no Parlamento brasileiro. O principal ponto de desacordo era justamente sobre o privilégio de exclusividade durante 30 anos para a Companhia, o que era visto por um setor dos legisladores como um possível entrave para a livre concorrência e para a criação de novas empresas de capital nacional que otimizassem a navegação na região.

A viagem inaugural da Companhia foi realizada em 1o de janeiro de 1853, na linha Belém-Manaus, na embarcação Marajó, comandada pelo 1º tenente Francisco Parahybuna dos Reis. Na edição de 19 de novembro de 1853, do jornal Treze de Maio, do Pará, é publicada a descrição da viagem assinada por Dr. Marcos Pereira de Sales, major do corpo de engenheiros.

 “Suspendemos ancora do porto desta capital, e seguindo pelas bahias de Marajó, Paquetá, Oeiras, e Breves, pelo furo do Tagipurú, e rio amazonas, fundeamos no porto da Barra às 10 horas e 10 minutos da tarde do dia 11 do citado mez, despendendo em toda viagem 10 dias,  16 horas, e 10 minutos, dos quaes 7 dias, 1 hora e 5 minutos em viagem corrente, e 3 dias, 15 horas e 5 minutos em demoras nos portos intermédios, a saber: Breves, Gurupá, Praínha, Santarem, Obidos, Villa Bela da Imperatriz, e Serpa” (SALES, 1853).

O engenheiro descreve dois pequenos incidentes na viagem, mas, com exceção destes, “todo o trajecto de ida e volta foi mui prospero”. Além disso, dá informações sobre a dificuldade de estabelecer critérios para avaliar a correnteza e nível do Rio Amazonas, além da quantidade de carga, passageiros, portos de parada e estações. Por fim, o engenheiro opina sobre a necessidade de fomentar a navegação no rio e a conexão desses trajetos com as províncias do sul e outros países. E conclui:

“Se a estes elementos de futura prosperidade se juntar a navegação do Madeira e do rio da Prata, ligando aquelle com o Paraguay por meio de boas estradas que transponhão as caxoeiras, se as Republicas da Bolivia, Perú e a Colombia se quiserem, por meio de tratados, utilizar do Amazonas como vehiculo de transporte para enviar á Europe os seus produtos, e franqueando seus portos permitirem a passagem dos do Pacífico, que por este canal evitaõ a mui perigosa e longa viagem do Cabo d´Horn, se a navegação por Vapor for estabelecida no alto Rio Negro e Oniroco, que se communicaõ pelo largo canal do Caciquiary, por onde na actualidade navegaõ barcos de 5 mil arrobas de lotação, cega a imaginação a avultada renda que o estado deve colher de semelhantes disposições, e o brilhante porvir que caberá em partilha as Províncias do Norte do nosso Império” (SALES, 1853).

A questão da abertura da navegação do Amazonas e seus afluentes a embarcações internacionais, no entanto, voltou a ser discutida apenas na década de 1860, gerando novos impasses no legislativo brasileiro.

Segundo Vitor Gregório, dessa vez, estava evidente o desenvolvimento da navegação a vapor e os ganhos obtidos pelas operações comandadas pela Companhia de Irineu Evangelista. Mas era necessário dar um passo além no processo de desenvolvimento da região. A Companhia passou a ser encarada, juntamente com a subvenção pecuniária que recebia, como um possível obstáculo para o avanço da região.

Os debates da época revelam, assim como nos anos anteriores, duas tendências. Uma delas, mais liberalizante, defendia o livre mercado e a livre concorrência, inclusive entre as empresas que viessem a ser criadas com o capital estrangeiro, e a outra, que temia a perda de soberania nacional sobre a Região Amazônica caso se abrisse a possibilidade de companhias estrangeiras operarem navios pelos rios.

Esta última tendência havia sido majoritária nas décadas anteriores, mas a década de 1860, o incremento da navegação e a exitosa experiência comercial e de transporte pelos rios da Bacia Amazônica influenciaram a liberalização do pensamento de grande parte dos legisladores brasileiros.

As discussões na Câmara e no Senado resultaram na promulgação do Decreto no 3.749, de 7 de dezembro de 1866, que representou a culminação de um longo processo decisório iniciado em 1826, durante os primeiros embates sobre a navegação a vapor no Rio Amazonas (GREGÓRIO, 2014).

Os quatro primeiros artigos do Decreto, determinavam:

“Art. 1º Ficará aberta, desde o dia 7 de setembro de 1867, aos navios mercantes de todas as nações, a navegação do rio Amazonas até á fronteira do Brasil, do rio Tocantins até Cametá, do Tapajós até Santarem, do Madeira até Borba, e do rio Negro até Manáos.

Art. 2º Na mesma data fixada no art. 1º ficará igualmente aberta a navegação do rio S. Francisco até á Cidade do Penedo.

Art. 3º A navegação dos affluentes do Amazonas, na parte em que só uma das margens pertence ao Brasil, fica dependendo de prévio ajuste com os outros Estados ribeirinhos sobre os respectivos limites e regulamentos policiaes e fiscaes.

Art. 4º As presentes disposições em nada alterão a observancia do que prescrevem os Tratados vigentes de navegação e commercio com as Republicas do Perú e de Venezuela, conforme os regulamentos já expedidos para esse fim.” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1866)

Por fim, o Decreto no 3.920, de 31 de julho de 1867, regulamentou, segundo Vitor Gregório, a forma pela qual a navegação internacional deveria ser realizada na Região Amazônica. A solenidade de abertura dos rios à navegação internacional se deu em 7 de setembro do mesmo ano.

Entre as décadas de 1860 e 1890, a paulatina abertura do Rio Amazonas e seus afluentes à navegação internacional, além da introdução das embarcações a vapor, foi decisivamente responsável pelo desenvolvimento econômico e social da Região Norte e por auferir lucros substantivos para o Império. Há que se destacar, também, que a economia e a sociedade naquela região tiveram impactos ainda mais profundos produzidos o Ciclo da Borracha.

Para além disso, a questão da navegação no Rio Amazonas revela um tempo em que, após a independência, o parlamento e o Primeiro Reinado discutiam a necessidade de integração territorial e econômica do país a fim de empreender um projeto para a consolidação do Estado-nação brasileiro.

A internacionalização da navegação revelou a necessidade de pensar marcos que garantissem a integridade da posse e o controle de uma vasta região, precariamente povoada, mas que significava uma fonte de riquezas e de recursos naturais e hidrográficos. Os debates na Câmara e no Senado, durante as décadas de 1830-1840, mostram intensa preocupação dos legisladores com a proteção da soberania nacional em detrimento da entrada do capital estrangeiro. Já na década de 1860, percebe-se a ampliação do pensamento liberalista entre os parlamentares, que fez com que a proposta de internacionalização da navegação a empresas de capital estrangeiro, ao contrário da concessão de exclusividade a empresas de capital nacional, fosse aprovada em ambas as casas do legislativo.

Por fim, toda a questão revela a complexidade de uma região ignorada desde a colonização e relegada a segundo plano pelos legisladores do Império até meados do século XIX. A Amazônia, dona de grandes potenciais naturais, energéticos, sociais e ambientais, é forçada a conviver, até os dias atuais, com a sina de oferecer muito em troca de muito pouco.

Seu imenso poder natural tem sido retribuído com descaso e destruição, como demostram as estatísticas atuais sobre o desmatamento, o desequilíbrio do regime de chuvas e os casos de espécies nativas da fauna e da flora em vias de extinção.

Uma grande tragédia denunciada pelos povos nativos da região, pelos órgãos de proteção ambiental e pelos ativistas do meio ambiente. E que teria sido vista com péssimos olhos pelo Padre João Daniel, que ainda no século XVIII escreveu sobre as belezas da região e sobre a forte personalidade do maior rio do mundo:

“Tem uma singularidade o rio Amazonas, que não será fácil descobrir-se segunda em algum outro rio, ainda dos mais famosos do mundo; e é que, contando tanto mundo no seu dilatado curso, não tem em tanto espaço alguma cachoeira, que também nisto se mostra singular a todos e para nos intimar que quem nasce para ser grande no mundo não deve ser arrebatado em catadupas, mas muito pacato, e pacífico, como é o grande Amazonas” (I, p. 43, apud SIEWIERSKI p. 28).

Referências Bibliográficas:

BRITO, Roberta Kelly Lima de. A introdução da navegação a vapor na Amazônia no século XIX: o processo de formação da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas. Anais do XII Congresso Brasileiro de História Econômica & 13ª Conferência Internacional de História de Empresas. Niterói, 2017.

CHAVES, Otávio Ribeiro. América portuguesa: do Tratado de Madri ao Tratado de Santo Ildefonso. Revista Territórios e Fronteiras, v. 7, n. 2, p. 218-234, 2014.

FAZCOMEX. Tipos de navios. 2021. Disponível em: https://www.fazcomex.com.br/blog/tipos-de-navios/

FRAZÃO, Eugênio Marques Rodrigues. A Marinha na Bacia Amazônica. A Defesa Nacional, v. 52, n. 607, 1966.

GREGÓRIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: a navegação do rio Amazonas e a formação do Estado brasileiro. 2008. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

GREGÓRIO, Vitor Marcos. O progresso a vapor: navegação e desenvolvimento na Amazônia do século XIX. Nova Economia, v. 19, n. 1, p. 185-212, 2009.

MINFRA. Bacia Amazônica Ocidental. 2014. Disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/dados-de-transportes/sistema-de-transportes/bacia-amazonica-ocidental

MINFRA. Bacia Amazônica Oriental. 2014. Disponível em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/conteudo/bacia-amazonica-oriental

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