Oitenta segundos no inferno
Partíramos de Manaus bem cedo naquela manhã de 24 de outubro de 1961. Nosso destino era Belém, onde deveríamos chegar pela tarde do mesmo dia, depois de escalar em Itacoatiara, Maués, Parintins, Óbidos, Santarém, e Altamira, nos Estados do Amazonas e Pará. Quinto e último dia, de uma viagem até o Acre, a tripulação mostrava sua satisfação por mais um regresso ao Lar e a perspectiva de alguns dias de repouso.
O veterano Catalina, tal qual seu primeiro vôo na região – em 1946 – voava sereno e pachorrento. Tendo já escalado em Itacoatiara e Maués, rumávamos para Parintins – na margem direita do rio Amazonas – voando a 900 metros de altura, logo acima da camada de pequenos Cumulus. Lá embaixo o mundo espantoso que é a floresta amazônica, interrompida amiúde pela marcha de um lago ou um rio.
Além da tripulação: eu, no comando, o co-piloto Pina, o rádio operador Magno, o mecânico de vôo Camarotti e o comissário de vôo Branco, estavam a bordo nove passageiros destinados a diferentes portos.
O Catalina, apesar de bastante eficiente na sua missão de desbravador da Amazônia, não prima pelo confôrto, olhando-o pelos padrões atuais de nossa aviação comercial. Dezessete passageiros são acomodados mais ou menos inconfortavelmente nas suas duas cabines: nove na fronteira e oito na trazeira.
Não tendo porão para carga, há, é colocada na esta, quando cabine fronteira em lugares vagos de passageiros. Nessa ocasião tínhamos sete passageiros na cabine trazeira. Na da frente iam dois e cêrca de 250 quilos de carga, junto ao pôsto de rádio operador, que também fica naquela cabine.
Com o pilôto -automático ligado, minha única preocupação era terminar o capítulo do livro que lia, antes de chegarmos a Parintins. A notável paisagem que passava embaixo não me atraia.
Cansado dela, deixava-a inteiramente ao Pina que estava a menos tempo na região. Êle que tentasse calcular o número de árvores que alcançava a nossa vista, ou o volume d’água ou mesmo, a quantidade de araras com as quais cruzávamos. Vista de um avião a baixa altura, a Amazônia se resume nisso: árvores, água e araras em profusão.
As 09:50 horas o Pina avisou-me que estávamos a 15 minutos de Parintins (cêrca de 45 quilômetros) e era tempo de começarmos a descer. Notanto a sua impaciência por eu continuar lendo, desliguei o pilôto-automático e pedi-lhe que iniciasse a descida.
Mal imaginávamos que, devido a uma parte da carga que transportávamos, estávamos mais perto do inferno que de Parintins.
Há uma infinidade de artigos que por sua periculosidade é proibido o seu transporte em aeronaves comerciais. Mas devido à morosidade ou mesmo à falta de outros meios de transporte e também – principalmente – à negligência por parte das Companhias de Aviação na aceitação de cargas e encomendas sem um exame do seu real conteúdo, limitando-se a aceitar, a respeito, apenas uma declaração de remetente, o transporte dêsses artigos é mais comum do que se ousa imaginar. O respeito pela vida alheia é coisa ultrapassada.
Acabando o capítulo que lia assumi o comando do avião, pois pretendia eu mesmo fazer o pouso na área aquática de Parintins, dado as condições usualmente violentas de suas águas. Continuei a descida normalmente até passar para baixo da camada de Cumulus, a 400 metros de altura, onde diminui a razão de descida enquanto reconhecia o terreno adjacente de Parintins. A esquerda divisei um pequeno rio que desagua no Amazonas cêrca de 2 quilômetros daquela cidade, rio acima e na mesma margem. Tudo parecendo normal, preparei-me para a aproximação e pouso.
Eram 09:57 horas quando o Inferno se abriu e nós mergulhamos nêle. Sei a hora exata porque o Magno acabara de a registrar no Diário de Bordo, para início da rádio-comunicações usuais de pouso. Começou com uma explosão abafada na cabine fronteira de passageiros, logo atrás de mim, onde se encontrava a carga que levávamos. Protegia-nos a mim e ao Pina, o co-pilôto, apenas uma parede metálica com 3 aberturas: 1 porta central de acesso a cabine de comando e 2 pequenas janelas atrás das cabeças minha e do Pina.
Por essas aberturas o Inferno chegaria a nós nos próximos instantes.
Virei-me rápido e perguntei ao Magno: “Que é que há?”. Como resposta recebi na cara um jato de fumaça quente e densa cinzento-amarelada e extremamente sufocante. Respirei fundo como reação normal. Pior: enchi os pulmões de fumaça. Mais tarde, no Hospital, constatei que além das pestanas e sobrancelhas bastante queimadas, também tinham desaparecido os pelos das narinas, prova que havia fogo violento com aquela fumaça inicial, pois êsse foi o único momento que expus o rosto. Sufocado virei-me para a frente e inclinado sôbre a roda de comando procurei afastar-me o mais possível da fumaça. Inútil: ela já tomara completamente a cabine. Tão densa que não conseguia ver minhas mãos no manche.
Reduzi um pouco os motores procurando manter uma descida suave enquanto pensava. O pânico ainda não chegara. “Ar puro é o meu primeiro problema”. Mas ar puro só havia fora do avião. Abri a janela lateral e expelindo a fumaça que tinha aspirado enfiei a cabeça através dela, recebendo no
rosto um inapto de ar a 200 quilômetros por hora. “Engraçado, e eu pensando que fôsse impossível botar a cara aqui. Que será que aconteceu lá atrás? Gasolina não pode ser. A única tubulação que há lá é de óleo hidráulico e isso não pega fogo.
Após respirar algumas vêzes, retirei a cabeça da janela, procurando pensar no que fazer. Nas minhas costas sentia um bafo extremamente quente. Olhei para trás e vi, vagamente, labaredas em lugar da cortina da janela atrás de minha cabeça. O pânico começou a insinuar-se. “Que maneira estúpida de morrer”. Eu não podia me defender. O que aprendera em 15 anos de aviação de nada me servia. Aquilo era completa- mente imprevisto e diferente de todo o treinamento pelo qual passara. “É aquela maldita carga. Só pode ser. E os responsáveis não estão aqui’. O desespêro chegou. Pensei momentâneamente em saltar e abandonar tudo. Logo deixei de lado a idéia. Não podia ser assim. Sei agora que se saltasse iria me arrepender mil vêzes antes de me esborrachar no chão.
Sentia o calor aumentando e aumentando. Principalmente nas costas, nuca e cabeça. Inclinei-me o mais possível sôbre o manche.
Se pudesse entraria pelo painel de instrumentos. “Preciso sair daqui antes que seja tarde. Mas como? – Só pousando – E o mato lá embaixo?” Centenas, milhares de árvores com mais de 30 metros me esperavam lá no chão. Pousar sôbre elas seria fatal.
O fogo já tomara completamente a cabine fronteira de passageiros. Naquele momento o mecânico de vôo, Camorotti, combatia-o inutilmente com um extintor manual. Mas eu não o sabia: tão violento e rápido era que eu julgava não haver sobreviventes lá atrás. Labaredas entravam pelas aberturas de minha cabine que fôra, desde o início, isolada do resto do avião pelo fogo.
Pensei novamente em saltar. Mas não era a solução, algo ainda poderia acontecer. Para respirar botei outra vez a cabeça para fora, mantendo-a lá até habituá-la ao impacto do ar. Abri os olhos e tentei focalizar a vista. Ardeu-me um pouco mas consegui ver as coisas quando já via relativamente bem, olhei para baixo com saudades do chão duro e firme. Embaixo, um pouco à esquerda e em frente, a mancha parda de duas lagoas sêcas contrastando com o verde escuro da mata. “É aqui. Tem que ser aqui”! A descida seria quasi vertical, estilo de vôo em picada, e as chances de acertar a manobra eram mínimas, pois se errasse o momento de interrompê-la para completar o pouso eu me enterraria no chão. Mas restava o consôlo de tudo acabar mais rapidamente. Não quiz descer normalmente, circulando a área, por dois motivos: levaria muito tempo, do que eu não dispunha, e, naquela confusão, eu poderia perdê-la de vista.
Tomada a decisão, não esperei mais, pois sabia que aquela era a minha chance. A cabine já estava muito quente e eu me expusera demais ao fogo, podendo em pouco tempo ficar inconsciente. Reduzi o acelerador ao mínimo, coloquei as hélices em passo máximo e com a cabeça ainda fora para ver e controlar a altura, empurrei o comando todo para a frente numa picada violenta. O Camarotti, que desde o início fôra expulso de seu pôsto pela fumaça, tivera a presença de espírito de abaixar os flutuadores de ponta de asa, antes de abandoná-lo, o que muito ajudou, amortecendo a aceleração durante a descida.
Os passageiros, fugindo ao fogo, estavam na parte traseira do avião. Naquele momento, junto a porta de saída que êle abrira para esgotar a fumaça, o comissário, Branco, homem suave e calmo, pai de quase uma dezena de filhos, com apenas 1 metro e meio de altura, travava desesperada luta corporal com um passageiro, com o dobro de seu pêso, que em pânico queria saltar pela porta. Felizmente conseguiu dominá-lo.
Nariz do avião apontado diretamente para uma das lagoas, eu a via crescer aos poucos à medida que baixávamos. Se algum dos meus ex-instrutores de vôo tivesse uma idéia do que ocorreria naquele instante, sentiria um calafrio, pois eu nunca fôra muito brilhante em pilotagem de precisão.
O chão crescendo cada vez mais, procurei avaliar bem a minha altura, pois teria que pousar sem o trem de aterrisagem, com menor margem de êrro, portanto. “Não, ainda não está na hora’. De repente senti uma sacudidela nos comandos: era o Pina. Respondi com outra sacudidela. Depois explicou: “Eu também estava com a cara de fóra para respirar. Quando vi a prôa do avião apontar para o chão e aquela lagoa subir em nossa direção, pensei que você tivesse apagado em cima do manche. Como não enxergava nada dentro da cabine o jeito foi sacudir. Ora bolas. Eu já estava vendo as rachaduras do barro sêco da lagoa”.
Minha orelha esquerda ardia, pois embora recebesse um impacto de ar no rosto, êle criava uma diferença de pressão entre a cabine e o exterior que fazia a fumaça e o fogo escoarem-se pela janela por trás de minha cabeça.
“É agora”. Calculei, olhando o chão. Respirei fundo, pus a cabeça para dentro e comecei a puxar o comando devagar, desfazendo o mergulho. Deixei à sensibilidade de minhas mãos o contrôle da velocidade, uma vez que não podia ver o velocímetro. O manche veio devagar até meu peito atingindo o fim de seu curso. E o chão não chegou. Esperei um pouco. nada. Nada” “Errei. Puxei cedo demais”.
Sabia que estava perdendo velocidade rapidamente e quando chegasse à mínima perderia a sustentação criada por ela, resultando daí um violento choque com o solo, se no momento estivesse mais alto do que supunha. Se acelerasse os motores para manter a velocidade, poderia atravessar completamente a área limpa do lago, alcançando terreno arborisado antes do pouso, com conseqüências imprevisíveis. Se tentasse mantê-la com o comando, isto é, baixando o nariz do avião, e estivesse muito baixo, atingiria o solo numa posição perigosa e com violência. Não podia igualmente arriscar uma orelha pela janela para avaliar minha altura, não só porque naquela posição eu poderia involuntariamente desnivelar as asas – se é que estivesse niveladas -, bem como ficaria com o pescoço desprotegido contra suas bordas caso ocorresse um choque “Sinuca bárbara”.
Quando já estava ficando impaciente pelo avião flutuar tanto e no ponto de fazer uma asneira da quilha arrastando no chão, mas qualquer, comecei a ouvir o ruido com uma suavidade tal que não quiz acreditar. “Será que acertei em cheio? “
Após deslizar alguns segundos, o avião parou abruptamente fazendo que eu fôsse projetado para a frente com uma tendência centrifuga para a direita. Dias depois o Sr. Abel de Oliveira, chefe do serviço de manutenção do Setor Amazônico da Companhia, e que esteve no local para colher dados para a Comissão de Inquérito sôbre o acidente, deu-me a explicação deduzindo pelo que viu lá: “O pouso foi perfeito. O avião deslisou sôbre a quilha, em linha reta, cêrca de 70 metros. Então o flutuador da asa direita tocou o solo sendo arrancado. O impacto levantou a asa direita fazendo a outra descer. O flutuador esquerdo apoiou-se no chão, não sendo arrancado devido a velocidade já reduzida, servindo, porém, como freio na ponta da asa e obrigando o avião virar para a esquerda, fazendo um ângulo de 80 graus. Aí parou.
Naquele impulso bati ligeiramente com o rosto na barra de comando, no lado direito.
Pensando nos tanques que ainda tinha muita gasolina e no fogo que agora, embora sem a violência inicial, se alastrava por tôda a cabine de passageiros, soltei o cinto de segurança e tentei abrir a janela – não sei como se fechara durante o pouso para saltar. Estava emperrada. Olhei para a direita. Através uma névoa amarelada que substituiria a fumaça, vi que o Pina já tinha saltado. Sua janela lateral e a saída de emergência estavam abertas. Não esperei mais. Levantei-me e mergulhei de cabeça pela janela. Aterrisei de cara no barro ressequido esfolando a testa e o nariz. A minha direita, rente ao chão, girava a hélice do motor direito, ainda funcionando reduzido. “Que droga, esqueci de desligar os magnetos. Ora, que importa?”
Levantei-me e corri rodeando o avião pela direita, ao mesmo tempo que chamava o Pina, que me esperava afastado uns 50 metros. Ao meu encontro surgiu uma passageira. Estava descalça; na confusão perdera os sapatos. “Comandante … Comandante … ” A sua expressão era um misto de gratidão, adoração e horror. Ela queria dizer algo e não conseguia.
Meio encabulado, disfarcei tentando aparentar displicência, como se tudo o que ocorrera fôsse rotineiro. “Já passo futuro. Agora vamos juntar o pessoal e continuar nossa viagem a pé”.
– “Mas, comandante, a sua camisa … as suas costas … Está todo queimado”. Seu olhar continuava maravilhoso e com certa dose de temor, como se eu fôsse um marciano recém desembarcado de um disco-voador. Concluí que devia estar com uma aparência assustadora. Comecei a sentir uma ardência generalisada em minhas costas, que ia aos poucos aumentando de intensidade. Passei a mão no rosto. Estava esfolado e sangrando. Senti a cabeça doendo e apalpei-a com cuidado. Meus cabelos eram uma massa compacta grudada à cabeça e se esfarelavam ao menor contacto. A brisa que soprava trouxe-me o cheiro de carne e cabelos queimados. Dos meus cabelos. Da minha carne.
Mais calma e como que frustrada por não ter meios de ajudar-me, a mulher continuou: “A sua camisa não tem mais as costas”.
O Pina alcançou-nos. Tinha as mãos e a cabeça bastante queimadas. “Rapaz”, que lenha. Desta vez a bruxa passou bem perto!
Eram 09:59 horas pelo relógio do Pina.
O tempo total de Inferno fôra de oitenta segundos.
Autoria: Daniel Ariosto Portela *
Data: abril de 1963
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(*) Comandante; piloto da VASP