Recaída burocratizante
O selo-pedágio é mais um desses equívocos, criados pela fertilidade regulatória do Estado, que terminam por infernizar ainda mais a vida dos contribuintes e usuários de serviços públicos. Trata-se, com efeito, de um anacronismo jurídico, de uma gigantesca recaída burocratizante e de um grave equívoco político.
Além disso, o selo-pedágio é operacionalmente inexequível, graças à complexidade de seu sistema de cobrança. Vejamos.
1 – Em qualquer país civilizado do mundo o pedágio tem a natureza jurídica de “tarifa”, ou seja, de uma remuneração que o usuário paga pela utilização de um serviço público que lhe é efetivamente prestado. Uma das características básicas da tarifa, que a distingue dos tributos em geral, reside na relação direta entre seu valor e a utilização mais ou menos intensa do serviço. Daí porque, idealmente, o pedágio deve ser cobrado em razão da distância percorrida pelo veículo em determinada rodovia. O novo pedágio à brasileira, no entanto será cobrado mensalmente, independe da freqüência da utilização de rodovias federais e varia – por incrível que pareça – em função da idade do veículo. Em síntese, o pedágio não passa de um “tributo” travestido de tarifa.
2 – O selo-pedágio sobrecarregará de maneira intolerável os proprietários de veículos. Imagine-se, conservadoramente, que metade da frota nacional de veículos circule, pelo menos uma vez por mês, em rodovias sob jurisdição federal. Isto significa que cinco milhões de pessoas acorrerão, a cada 30 dias, aos pontos de venda de selos. Admita-se agora que essas pessoas prefiram, por conveniência, comprar o selo num posto de gasolina. Como o selo não é auto-adesivo e necessita ser colado no vidro do veículo (é essencial que o selo não possa ser removido sem destruição), pode-se presumir que o motorista peça esse serviço extra ao próprio posto. (Em alguns casos serão necessários oito selos de cada vez.) Imagine-se, finalmente, que o ciclo completo dessa operação consuma, num cálculo otimista, dez minutos. No total, terão sido gastas 27 500 horas/dia apenas na aquisição e colagem do selo-pedágio em postos de gasolina. Alguém já pensou no imenso desperdício de tempo, energia e dinheiro que isso representa?
3 – O pedágio não será exigido nos trechos das rodovias federais sob administração estadual ou municipal e ainda nos perímetros urbanos dos municípios. (Esclareça-se que perímetro urbano, como consta da Instrução Normativa que regula o pedágio, “é aquele definido em lei municipal, conforme prescreve o artigo 32 do Código Tributário Nacional”.) Como grande parte das rodovias federais atravessa diversos municípios, cuja legislação sobre perímetro urbano varia, os motoristas cautelosos deverão, doravante, munir-se não apenas de mapas rodoviário mas também de um vademecum de posturas municipais. Idealmente, recomenda-se que ninguém mais transite nas estradas federais sem levar como co-piloto um bom advogado tributarista.
4 – A mecânica de arrecadação do pedágio é um exemplo de imbróglio administrativo. A regulamentação da matéria compete à Secretaria da Receita Federal, que jamais cuidou de pedágio; a confecção dos selos incumbe à Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), que se ocupa exclusivamente de serviços postais; e a fiscalização do pagamento do pedágio caberá ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), que não está equipado para desincumbir-se desse tipo de tarefa. Ora, teria sido muito mais simples e indolor para os contribuintes um pequeno aumento de um imposto federal qualquer e a consignação de verba orçamentária suficiente para realizar obra de restauração e conservação das estradas federais.
5 – Do ponto de vista político, o selo-pedágio será mais um fator de desgaste para o governo e o Congresso. Surpreendentemente, esse aspecto não foi considerado quando da aprovação da lei que o criou. Se o mecanismo de cobrança e fiscalização for imperfeito e burocratizado como tudo indica que será, os proprietários de veículos estarão submetidos à humilhação das filas e às extorsões de beira de estrada. São nesses momentos que o governo e a classe política se submetem ao crivo do julgamento popular.
A história repete-se, mais uma vez, sob a forma de farsa. O selo-pedágio lembra, em muitos aspectos, as famigeradas plaquetas extintas em 1982. Poucos se recordam da batalha que se travou, na época, contra os interesses subalternos dos “plaqueteiros” -intransigentes defensores do cartório de fabricação das plaquetas. Na época, foi preciso uma lei para alterar o Código Nacional de Trânsito, à qual se seguiu uma firme resolução do Contran proibindo que a plaqueta fosse substituída “por selo adesivo, símbolo similar ou quaisquer outros recursos que implique a fixação no veículo automotor”.
Neste ano eleitoral – se outra razão mais nobre não se quiser invocar – o Congresso Nacional prestaria um grande serviço, ao povo e em causa própria, revogando com urgência a lei que instituiu o absurdo selo-pedágio.
Autoria: João Geraldo Piquet Carneiro **
Data: abril de 1989
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(*) Publicado originalmente em O Globo de 13/03/1989
(**) Advogado; coordenador do extinto programa Nacional de Desburocratização