Sonho, Barreiras & Jambettes
Sonhar não é nada de mais. Todos nós sonhamos. Entretanto, sonhar na mesma noite com dois Secretários de Governos Estaduais é fato raro. Ainda mais quando os sonhos resultam em verdadeiros pesadelos. Pelos assuntos e pelas medidas que aquelas autoridades tomavam nos sonhos reparei ao acordar que neles eu teria matéria para esta coluna. E que matéria!
Um deles, Secretário de Finanças, determinou a seu chefe de gabinete que convocasse a imprensa para conhecimento de uma medida salvadora dos cofres estaduais, capaz de liquidar com a sonegação. Nesse convite estava a nossa BR. E lá fui eu, para fazer jús ao tico-ticos que ganho.
Na hora marcada, a sala cheia de escribas e nada. Demora. Suspense. Eis que uma hora depois chega o ilustre. Com um sorriso de retrato de primeira comunhão cumprimenta a todos. Senta-se e após cruzar as pernas, nada confiante no terylene que enverga, preocupa-se em desmanchar as rugas do tecido da calça. Pigarreia. Empertiga-se como se fosse anunciar a equação da quadratura do círculo.
Então, com toda solenidade, informa que após longos e estafantes estudos de sua assessoria, encontrará sua Secretaria a fórmula perfeita de eliminar a sonegação dos tributos estaduais. Antes, com o ar patriarcal de “coronel” nordestino, descontrai a reportagem, informando que será distribuída nota a respeito.
*Meus senhores. O Governo deste Estado vai restabelecer algumas das 18 barreiras fiscais anteriormente existentes em pontos-chaves das rodovias. De início serão quatro; mas tão logo se constate os resultados positivos da medida, colocaremos em funcionamento as demais”.
Ainda no sonho, rodei nos calcanhares e sem a menor cerimônia saí, bestificado com o testemunho de que ainda existem homens da administração pública e em cargos de confiança despreparados para o exercício dos mesmos e completamente alheios à dinâmica tributária do Governo Federal!
Restabelecer barreiras botocudas onde a receita só aumenta nos bolsos dos agentes fiscais, como ideia salvadora, era dose p’ra dinosauro. Não aguentei e fui de volta à redação. Pensando naqueles Estados que nestes últimos anos melhores resultados obtiveram no combate à sonegação através de modernos recursos de fiscalização indireta coincidentemente aqueles que haviam extinguido barreiras que transformavam suas unidades federativas em campos de concentração, onde a cegueira dos guardas e as mordaças dos cães de vigia eram obtidas à custas de coloridas fotos de Tiradentes ou de Santos Dumont. Pensando em medidas objetivas como as exigências feitas por ocasião de renovação de licenças de veículos; a sistemática de retenção na fonte, onde o contribuinte por uma imposição civica é levado a ser agente colaborador do Governo; no uso inteligente do computador; na análise microeconômica setorial comparativa; nas comprovações para participação em certos atos de iniciativa governamental e por ai afora.
Pensando, enfim, em escrever um artigo desnudando a mediocridade do distinto.
Eis que ainda em sonho, chego à redação e busco desabafar meu desencanto com o chefe. Como sempre muito ocupado com o “tesoura-press”, ouve-me com o pensamento distante de minhas palavras.
Percebo a inutilidade de meus comentários, ponho-me a folhear os inúmeros recortes, já caprichosamente colados. Azar o meu. Mal virei a notícia vinda da cidadezinha do Agreste de que uma galinha bem educada e democrática chocava junto com os seus, ovos de codorna (e dava codorna, sim), esbarro no telegrama que dizia haver certo Secretário de Segurança mandado averiguar, para aplicar a lei se verdade, a procedência de um anúncio classificado, onde de- terminada firma pedia “moça branca para as funções de secretária”. dotada de determinados requisitos profissionais. Tornei a ler, depois de limpar os óculos com o lenço.
Eu que sempre pensara que Chefe de Polícia era para manter a ordem. Para aprender marginais e subversivos. Para evitar roubos de automóveis. Para eliminar o lenocínio. Para proteger o operário que sai de casa de madrugada ou o estudante pobre que se recolhe cansado às tantas da noite. Para dar tranquilidade a uma coletividade que mediante tributos o sustenta (e a toda a. máquina existente à sua disposição). Eu estava enganado. Redondamente enganado ao imaginar que a aplicação da legis- lação anti-racista era de competência dos Secretários da Justiça ou do Interior. Mais enganado que marido que se ausenta por mais de dez meses e acredita na excepcionalidade do período de gestação, ao orgulhar-se do novo rebento.
E no meu espanto ocorreu-me que esse anunciante talvez fosse mais honesto, do que outros que sabidamente colocam um anúncio, racialmente certinho, mas na hora da seleção utilizam-se de todos os recursos possíveis (e são inúmeros) para jogar p’ra cima as jambettes. Mais honesto porque na mente da pobre moça de cor, que sai ainda de madrugada do subúrbio distante em dia de segunda-feira, prenhe de anúncios cuidadosamente recortados, não coloca uma esperança que o anúncio genérico lhe oferece, mas que a realidade, em muitos casos, proíbe antes mesmo de ser letra de forma.
A pobre jambette que no sábado anterior deixou de sambar até as tantas, para estar em dia na longa caminhada da segunda-feira, em busca do pão-nosso-de-cada-dia.
Que é tentada para outros caminhos mais fáceis do que o trabalho, mas que herdou princípios que lhe convencem da necessidade de enfrentar o trem, duas vēzes por dia, apinhado de gente, bolina e punguistas (estes que deveriam ser objeto da atenção do Secretário de Segurança) e de acordar no meio da noite para fazer o pobre almoço que não tem certeza se irá comer. acidificado pelo calor úmido. A pobre jambette que acreditou não em um anúncio desonesto, mas em muitos outros anúncios desonestos e perambulou um dia inteiro, subindo e descendo escada e elevador, tendo de voltar esfomeada e desencantada ao subúrbio distante, com alguns cruzeiros a menos das passagens que gastou à toa
O telegrama não diz, mas muito provavelmente essa “autoridade” aprendeu tardiamente a edição do jornal. E o coitado que, talvez desconhecendo a lei, foi honesto e sincero. Sincero como a aristocracia negra de São Paulo que criou um clube de escuros de “caixa alta” (o que não deixa de ser discriminação racial). objeto de recente reportagem em revista de circulação nacional. Imaginei as boas gargalhadas que devem estar soltando os marginais daquele Estado.
E acordei. Tudo foi sonho. Ou não? Que há gente capaz de dar dessas, isto há. Estão aí os jornais que não me deixam mentir. Tomara que tenha sido sonho mesmo, porque não foi sonho certo ofício de delegado de delegacia especializada, solicitando a entidade de nossa classe a localização de um veículo roubado. Não é anedota, não; o moço curtiu em papel timbrado a mais catona das inocências. Depois desta mais confundo sonho com realidade.
Autoria: Luciano Pinho*
Data: 01 de fevereiro de 1972
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(*) Assessor político da diretoria da NTC