Transformação da Marinha Mercante
A transformação e o desenvolvimento que vai tendo a marinha mercante, são bastante notaveis para merecerem attenção. À construcção de navios de madeira, tão antiga como o mundo, e por tanto tempo sem rival tende a desapparecer completamente, ou, pelo menos, a conservar apenas uma existência local e excepcional em paragens longínquas. As difficuldades e os riscos inherentes a essa construcção; o numero escasso de arvores capazes, por seu tamanho e forma, de serem n’ella aproveitadas; a impossibilidade de construir cascos de madeira de grandes dimensões, que não alterem a forma sob a acção das ondas; a quantidade de insectos que corroem o páu; tudo isso tinha demonstrado aos homens intelligentes, que vião introduzir-se o ferro na construcção naval, que, mais cedo ou mais tarde, o navio deste material havia de substituir a construcção de madeira.
Tal opinião, a principio, podia ser considerada pouco verosimil, hoje porém, depois que em 1859 foi lançado ao mar o Great Eastern, ninguém mais pode d’ella duvidar. Se esse navio, mesmo construido de ferro, constitue um triumpho que até agora não poude ser excedido, é fácil de ver que seria um impossível se pretendessem empregar a madeira em seu fabrico. Como era natural desde logo os Americanos, os Canadenses, muitos outros povos que não tinhão meios de fabricar navios de ferro, ou que não podião construi-los de modo a obter vantagem sobre a Inglaterra, declarárão-se adeptos decididos do antigo systema, levando os Estados Unidos seos esforços até tentarem demonstrar a inferioridade dos cascos de ferro.
Em uma obra que, em 1875, publicou abalisado engenheiro, procurou-se demonstrar que a fluctuação devida a leveza do material nos navios de madeira, permettia carregar muito mais mercadoria do que a maior capacidade a dar em um navio de ferro; que a elasticidade das fibras da madeira offerecião também vantagens que não podião ser obtidas com materiaes in-elasticos como o ferro (na opinião do autor) e, finalmente, que a madeira era o melhor e o mais vantajoso dos materiaes empregados na construcção naval emquanto o ferro era o peior e o menos digno de confiança. Todo este trabalho, entretanto, foi inútil; cada anno se confirma mais o triumpho do navio de ferro e ninguém pode duvidar actualmente do êxito da lucta.
A memória do Sr. Griffin, annexa ao Annual Statment of the Navigating and Shipping of the United Kingdom de 1880, se não dá noticia directa da decadência da construcção de madeira, deixa que se a perceba examinando a diminuição dos navios de vela e o augmento dos a vapor. Sabe-se que estes ultimos são fabricados quasi que somente com ferro e aço, emquanto nos primeiros se emprega a madeira, a substituição de uns por outros demonstrará, por conseguinte, a dos materiaes.
Desprezando a parte que se refere ás marinhas de outras potências, vejamos o augmento ou a diminuição de toneladas dos navios que entrarão nos portos da Inglaterra, durante o período de 1865 á 1879 inclusive.
Comparando esses algarismos vê-se:
Que ha uma continua e considerável diminuição na tonelagem dos navios á vela, a par de um augmento constante na dos á vapor;
Que no período de 1875 a 1879 o augmento de toneladas dos primeiros decahe a uma quarta parte, emquanto com os segundos duplica;
Que a diminuição na tonelagem dos vasos á vela segue uma marcha constante;
Finalmente, que em 1879 o numero de navios de vela que accresceram é pouco mais ou menos igual a um terço dos que diminuiram, ao mesmo tempo que o numero a vapor, é três vezes maior.
Accresce ainda que a tonelagem cios navios a vela diminuio em 1879 de 165,662, emquanto a dos vasos a vapor augmentou de 194,770, e se considerarmos que o vaso a vapor desenvolve um trabalho muitíssimo maior e que a relação dos navios dessa espécie para os á vela, construídos durante o anno passado, foi de 5:1, fica claramente demonstrado que a substituição da madeira polo ferro opera-se com incrível rapidez, estabelecendo condições novas a que terá de submetter-se o commercio do mundo.
Ao mesmo tempo que se opera tal transformação, melhoramentos importantes se realisam nas dimensões, marcha, segurança e efficiencia dos navios destinados a viagens de longo curso.
Em 1860 o maior vapor construido, sem fallar no Great Eastern, não chegava a ter 350 pés de quilha, 45 de bocca, 3,500 toneladas de deslocamento e 4,000 cavallos indicados; actualmente (1880) as linhas Whit-Star e Inman possuem, já promptos ou ainda em construcção, navios de mais de 440 pés de comprimento por 45 de bocca e numero superior a 5,000 cavallos indicados. O Servia que a linha Cunard está construindo em Glascow, tem 500 pés de quilha, 50 de bocca e. 10,000 cavallos de força indicada; o City of Rome, da companhia Inman tem maiores dimensões que o Servia; as linhas Guion e Allan construem também vapores iguaes a esses.
E nada faz acreditar que cessem os motivos que determinaram semelhantes construcções. Apezar do numero e da capacidade dos navios que fazem a travessia da Inglaterra para os Estados-Unidos, os passageiros necessitam, para obterem passagem, pedil-as com semanas de antecipação e além disso o augmento de população e o desenvolvimento da riqueza dos Estados-Unidos e do Canadá deixam esperar um accrescimo importante na permuta dos productos industriaes ou agrícolas dos dous paizes.
Por outro lado o impulso que vai tendo a marinha britannica não se limita ao trafico entre o Reino Unido e o continente Norte-Americano; realisa-se do mesmo modo em outras linhas. O serviço de malas com as colônias do cabo da Boa Esperança, por exemplo, que ha 20 annos era feito por quatro navios, dos quaes o maior tinha 224 pés de quilha por 30 de bocca, 739 toneladas e 135 cavallos indicados, vai ser desempenhado por vasos de 365 pés de comprimento por 43 de bocca e machina proporcionada. A companhia British India construe vapores de 400 pés de quilha, a Peninsular and Oriental possue seis de dimensões ainda maiores, e a Ocean Express, que ora se fórma, pretende fazer o serviço, partindo de Mildford Haven, com vapores de aço tão velozes ou mais ainda que os das linhas de Liverpool.
A qualidade e o caracter geral dos grandes navios a vapor da Inglaterra melhoram ao mesmo tempo que suas dimensões e velocidade crescem. Seja qual for a causa que a isso se queira dar é indubitavel que seus planos são sugeitos a rigorosa inspecção scientifica, e obtém, nos registros do Lloyd, classificação especial. Houve um tempo em que esta instituição era puramente conservadora, e, sem admittir reformas, constituira-se o firme sustentaculo das regras e formulas invariáveis que correspondiam perfeitamente aos navios de vela; quando, porém, o uso do ferro se foi generalisando, quando se passou da quilha igual a 4 ou 5 vezes a bocca para a de 8, 10 e 11 vezes quando, na sociedade dos Architectos Navaes, os officiaes do Lloyd discutiram durante annos, com os mais abalisados engenheiros e os principaes armadores, tornou-se evidente que essa instituição necessitava progredir com a época. Tratou desde logo de substituir o pessoal por moços habilitados e deixando aos constructores plena liberdade para proporem todas as reformas que julgassem necessarias, acceitou as que lhe pareceram convenientes, dando ás innovações classificação especial.
D’esta forma obteve a confiança publica e os armadores começarão a buscar sua inspecção, exercendo-se assim uma influencia da maior importância em um paiz em que a intervenção do governo é insuficiente.
Um outro assumpto que tem merecido séria attenção e em que se tem realisado grandes melhoramentos é a divisão em compartimentos estanques. Embora seja grande o numero destes o risco de ir a pique não é menor se não houver muito cuidado em conservar fechadas as portas e communicações, — o que bem provado ficou com a catastrophe do Vanguard; é necessário, entretanto, que seja o maior possivel ou, pelo menos, o sufficiente para que um simples accidente não occasione a perda total da embarcação
Como é sabido ha alguns annos o almirantado ordenou um inquérito sobre esse assumpto, e embora não se publicasse o resultado, não se ignora que foi pouco satisfactorio quanto á marinha mercante. N’estes últimos cinco annos, porém, adiantou-se alguma cousa, e chegou-se a ver um vapor, o Arisona, chocar, a toda a força um banco de gelo, não só sem afundar-se, como continuando viagem até o primeiro porto.
Vejamos agora quaes os melhoramentos que na força structural se tem realisado nos grandes vapores inglezes. Para quem conhece o assumpto, não ha a menor duvida que a principio foram enviados para o mar, navios de ferro debilmente construídos, impróprios para a luta com o oceano, e que por isso se perderão. Em todos os portos do Reino Unido em que se carenão embarcações ha provas d’essa dolorosa verdade, que só pôde achar desculpa no facto de serem então os meios empregados para fortalecer os navios de ferro puramente experimentaes. Hoje pode-se affirmar sem temor que muitos dos maiores e dos mais rápidos vapores existentes são, ao mesmo tempo, os mais sólidos e os de melhores qualidades náuticas, apesar do immenso comprimento da quilha.
Muitos officiaes, principalmente da escola antiga, acreditam que um navio comprido é forçosamente pouco solido, e que taes construcções estão votadas ao desastre; essa opinião é mal fundada principalmente quanto aos construidos de aço ou ferro, material com que sempre é possivel obter a resistência desejada.
O balanço de BB a EB, está hoje demonstrado que não depende do comprimento da quilha, e o de popa e proa é sempre menor em um navio de maior comprimento. O governo do leme também nada soffre.
Vê-se bem, pois, quão considerável é a tendência de fazer augmentarem as dimensões dos navios, facto que accarreta um accrescimo correspondente de capacidade ou tonelagem. Por exemplo, enquanto o numero dos vasos que entraram nos portos do Reino Unido em 1879, representa um augmento de 495 sobre o mesmo numero do anno anterior, a tonelagem subio a mais 1:973.028. Sahirão de menos 131, porém com mais 1:000.000 de toneladas.
Para bem apreciar o papel que representa a Inglaterra no commercio maritimo do mundo, é preciso ter bem presente que actualmente, levando em conta a efficiencia da marinha a vapor, a tonelagem britânica excede consideravelmente á das demais potências reunidas.
Na memória do Board of Trade de 1880 diz Mr. Griffin « que a marinha mercante ingleza é representada por 16:000.000 de toneladas emquanto a do resto do mundo só chega a 11:000.000. A proporção que conservava em 1860 era de 47 por 100, “hoje é de 58 e promette augmentar rápidamente.» Tudo isto é devido á substituição da madeira pelo ferro, das velas pela maquina e do ferro pelo aço que agora se effectua.
O uso do aço como material de construcção não é novo: os Srs. Samuda & Irmãos tem construido navios d’este material que nada deixão a desejar; os Srs. Laird, de Birkenhead, fizerão outro tanto, e o uso parece ter demonstrado a grande vantagem do aço sobre o ferro no caso de encalhadelas. A razão fundamental, entretanto, para o emprego d’esse material na construcção dos navios foi sempre e é hoje a diminuição do peso e conseguinte augmento de capacidade para carga.
E’ desnecessário insistir em demonstrar quão importante é o lucro do armador que substitue o ferro pelo aço. A economia de 150 toneladas de peso em cada mil permitte ao navio embarcar mais 15 % de mercadorias e compensa largamente a elevação do custo, elevação que só se deixa sentir uma vez, enquanto a differença do frete se mostra sempre. O uso do aço é hoje conhecido por todo o mundo, bem poucos, porém, sabem que esforços gigantescos, que immensa despeza em experiências e tentativas fez a industria ingleza para obter uma chapa com as condicções necessárias. Visitámos ha annos uma fabrica que tinha contractado com o almirantado o fornecimento de chapas d’esse material e só n’um dia vimos ficarem inutilisadas dez ou doze, outras empresas trabalhavão com identico resultado e espanta ver os esforços que, tanto n’esse fabrico como no de couraças, fez a industria particular, antes que o êxito coroasse seu trabalho. Recorreu-se a diversos processos e é bem provável que se abandonasse a tarefa se a invenção de Henry Bessemer não tivesse attrahido a attenção dos constructores navaes.
O emprego do aço trouxe, além de tudo, uma outra vantagem. As chapas de ferro que se empregavão na construcção dos navios nem sempre erão boas, e, como não passavão previamente por prova alguma, chegarão ás vezes a ser péssimas ; com as de aço acontece o contrario.
O Lloyd exige que toda a chapa ou váo dessa espécie, a empregar em navios de aço, tenha a marca que denota ter passado por todas as experiências. Vê-se pois que o emprego deste ultimo é mais benéfico, não só por sua superioridade sobre o ferro, como pelas experiências porque passa e que deixão bem patente sua excellente qualidade.
Quanto aos melhoramentos adoptados na construcção naval terminaremos dizendo — o fabrico dos navios mercantes não guarda analogia alguma com os navios de madeira, obedece a um conjuncto de regras scientificas que são o resultado de modificações theoricas e de habilidade pratica.
Autoria: Garcez Palha *
Data: 01 de junho de 1882
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(*) 1° Tenente da Marinha.