Sagres: Do mito às Grandes Navegações
A Escola de Sagres foi, supostamente, uma escola de navegação fundada pelo Infante D. Henrique, na região de Sagres, ao sul de Portugal, no século 15. A Escola teria sido criada com o intuito de formar novos navegadores, apresentando conhecimento relacionado às áreas de geografia, astronomia e cartografia.
A falta de documentação acerca da instituição abre margem para interpretações a respeito da real existência da Escola de Sagres que, apesar disso, se coloca no imaginário contemporâneo, nacional e estrangeiro como uma figura inseparável do homem que ficou para a história como principal impulsionador dos descobrimentos portugueses.
O Infante
Apesar de sua pouca experiência no mar, D. Henrique recebeu o cognome de “Navegador”, além de também ser conhecido como o “Solitário de Sagres” e o “Infante de Sagres”1.
- Henrique nasceu na cidade do Porto, em 1394, em uma época marcada pela consolidação da Independência de Portugal frente à Castela. Os conflitos na fronteira terrestre ao norte de Portugal o fizeram se voltar, efetivamente, para o mar. Isso passaria a mudar a forma como o país ibérico realizaria, a partir de então, suas trocas comerciais com o exterior e as relações diplomáticas com algumas outras nações que também buscavam a opção atlântica.
Apesar da sua tenra idade, com 21 anos apenas, D. Henrique é um dos filhos de D. João I que demonstra maior interesse no ataque que se planeia pela Corte a Ceuta. Tal era o entusiasmo, que lhe foi concedido o comando de uma esquadra que iria se juntar à restante força naval, em Lisboa. Em 21 de agosto de 1415 deu-se a conquista de Ceuta, que se torna o marco que deu início às Grandes Navegações e, consequentemente, à consolidação das rotas marítimas de comércio do Atlântico.
Na regência de D. Pedro, irmão mais velho do Infante, as navegações atlânticas passaram a conhecer um estímulo sem precedentes, fato que se deu principalmente com a adoção de um novo meio naval: a caravela, a partir do ano de 1441. Assim, o Infante D. Henrique passou a enviar diversas expedições ao longo da costa ocidental africana, algumas delas financiadas por recursos privados, com o objetivo de obter escravos e produtos oferecidos pelo mercado africano, como marfim e ouro.
O Navegador era um grande entusiasta de uma expansão territorial de Portugal no norte do continente africano. Para isso, dispunha de diversos navios ao seu serviço, que tiveram grande importância a partir da década de vinte do século 15, quando passaram a navegar constantemente nas proximidades da África Ocidental, o que evoluiu o conceito que se tinha das explorações marítimas, pois proporcionou a exploração de novos recursos, além da colonização das ilhas descobertas. Com isso, o território português sofreu constantes mudanças, com a inclusão das novas regiões ultramarinas.
A partir daí a expansão portuguesa era inevitável, tendo como principais responsáveis os descobrimentos marítimos no Atlântico. Assim, Sagres torna-se a origem de um sonho que permitiu abrir novos territórios ao mundo.
Escola de Sagres: versões e revisionismos
Muito já foi debatido a respeito da real existência ou não da Escola de Sagres no cenário historiográfico português. No entanto, a ideia de uma instituição criada pelo Infante D. Henrique, em que se discutia sobre áreas científicas como astronomia ou cartografia e para onde iriam grupos de estudiosos dos mais diversos locais, tem sido descartada com o tempo. Tal ideia é, acima de tudo, uma lenda cujas evidências ainda não foram apresentadas, motivada principalmente por escritores que objetivavam enaltecer a figura do Navegador.
Sabe-se, contudo, que no ano de 1443 foi concedido ao Infante D. Henrique, pelo seu irmão D. Pedro I (regente do trono na altura), uma vila inóspita na região de Sagres, localizada em Terçanabal. Em seu testamento, o Infante menciona que a vila deveria ser um local de apoio aos navegadores que passassem por ali.
Não foi encontrada na historiografia analisada qualquer referência à Escola de Sagres. Os documentos (feitos por Gomes Eanes de Zurara, Duarte Pacheco Pereira ou João de Barros) relatam apenas a criação de uma vila em Sagres. A difusão da lenda se deu por crônicas de Damião de Góis, o qual retratou D. Henrique como um homem dedicado ao estudo da navegação, e em face disto teria fundado uma vila em Sagres. Damião também afirmou que, após retornar de Ceuta, o Infante teria selecionado como local de moradia uma parte da região do Algarve, no cabo de São Vicente, conhecido anteriormente à lenda como Sacrum Promontorium, que significa Cabo Sagrado, e de onde deriva a mítica localização de Sagres2.
De acordo com Duarte Leite, a primeira referência à Escola de Sagres ocorreu em 1625, no Hakluytus Posthumus, de Samuel Purchas. Dentre os argumentos utilizados por Purchas, estavam: a gama de conhecimentos atribuída a D. Henrique, a vinda de um cartógrafo para Sagres e o alto grau de instrução técnica dos marinheiros portugueses. Dessa forma, a articulação dos elementos citados acima deu força à ideia de que havia uma instituição de ensino na vila de Sagres.
Durante os anos que se seguiram, a ideia de que este centro de partilha de conhecimento havia, de fato, existido, foi ganhando cada vez mais força, através de várias suposições, nem sempre baseadas em evidências – como se costuma dizer, “quem conta um conto, acrescenta um ponto”.
Só em 1877 é que começou a desconfiança sobre esta questão, quando D. Francisco de Sousa e Holstein profere uma conferência sobre A Escola de Sagres e as Tradições do Infante D. Henrique, onde coloca em dúvida a sua existência. Ao contrário da maioria dos autores, o Marquês de Sousa e Holstein tinha se dedicado a ler os cronistas e os documentos existentes, o que o levou a afirmar que não existiu uma escola em Sagres, no sentido lato da palavra, porém mais um ‘centro de ação’. Salienta, ainda, o fato de o Infante não mencionar a escola no seu testamento, onde todas as suas restantes fundações são descritas em pormenor.
Houve divergências acerca da existência da Escola por parte dos autores, que acabaram por se dividir em três grupos: um minoritário que negava abertamente a existência da instituição, o segundo grupo, que a via como um centro de estudos, e o terceiro, que demonstrava ceticismo, por não afirmar que havia uma instituição de ensino, mas também que seria impossível realizar as Grandes Navegações sem que houvesse um sistema centralizado de ensino aos navegantes.
No contexto atual, a Escola de Sagres tornou-se um símbolo do Infante D. Henrique e das atividades relacionadas às Grandes Navegações. A lenda ultrapassa os fatos, mas isso não diminui o valor de Sagres como símbolo de uma proeza coletiva que levou os portugueses a aventurarem-se nos caminhos do mar.
O Infante D. Henrique foi escolhido para ser o Patrono da Escola Naval portuguesa. Essa escolha deveu-se a tudo aquilo que o Infante representa e simboliza para a história da Marinha portuguesa e, em particular, para o ensino naval e para a Escola Naval, que adotou a sua divisa, ‘Talant de Bien Faire’ – A Arte de Bem Fazer.
Reforça-se o caráter mítico da existência da Escola de Sagres, elucidado pelo professor Tomaz Ribeiro Colaço, da Universidade de Coimbra:
“Procuremos na Escola de Sagres o parentesco espiritual da expressão ‘escola’ filosófica ou literária; escola de ambição, de entusiasmo, de extralimitação, de sacrifício científico a um ideal.”
De fato, os formidáveis avanços tecnológicos nos instrumentos de auxílio à navegação, na cartografia e na construção naval fizeram de Portugal uma verdadeira Escola de Sagres e o paradigma do Poder Naval do século 15. Portugal: o berço da ciência náutica contemporânea – instrumentos de auxílio à navegação
Em relação aos instrumentos de navegação, a bússola era o principal dispositivo. Através de um artefato imantado apontado para o Norte, estimava-se a localização em relação aos pontos cardeais, com a vantagem de não depender da luz do sol, da altura das estrelas e não era suscetível às intempéries. Ainda que houvesse o erro da agulha, era um dos diversos instrumentos que auxiliavam as decisões de manobra dos navegadores portugueses.
Já o astrolábio moderno foi criado na segunda metade do século 15 pelo salamanquense Abraão Zacuto, em serviço à Coroa portuguesa. Era utilizado para a determinação da altura dos astros, principalmente do Sol. Através das tábuas astronômicas de Zacuto, a navegação ganhou mais um subsídio no que concerne à orientação e posicionamento no mar. Quando se está no Hemisfério Norte, a estrela Polaris é a usada como base em relação aos cálculos sobre latitude, contudo, quando se aproxima da Linha do Equador, essa estrela fica abaixo da linha do horizonte, não podendo ser vista por quem está em posições austrais. Por este e outros motivos, o astrolábio foi um importante instrumento na navegação ao Hemisfério Sul, pois independia da estrela polar para estimar a posição.
A barquinha foi um dos primeiros meios de se obter a velocidade das embarcações. Seu princípio de funcionamento consistia em jogar no mar um pedaço de madeira amarrado por um cabo a um carretel. O cabo que se desenrolava com o seguimento do navio possuía seções iguais marcadas por nós. Tendo uma ampulheta em mãos, contava-se durante 30 segundos a quantidade de nós que saía do carretel, sendo esse valor a velocidade em milhas náuticas por hora. Surgiu então a unidade de velocidade denominada nó.
Cartografia
As cartas náuticas até os dias de hoje dão o alicerce ao navegante em relação aos rumos e perigos à navegação, bem como informações sobre massas de terra, como ilhas, estreitos, parcéis, entre outros. Uma das cartas náuticas mais antigas de Portugal, a de 1471, atualiza os locais explorados pelos portugueses na África e detalha feições do litoral que se estendem de Castela até a Normandia. Destaca-se a riqueza de detalhes desta carta náutica, bem como uma quantidade modesta de erros cartográficos e deformidades.
Segundo MARTINS (2005), Pedro Nunes corrigiu os erros das cartas náuticas da época e lançou as bases para a chamada carta de marear, uma carta náutica bastante próxima da que é conhecida hoje. A referida carta tinha como fundamentos:
“a) representar as linhas de rumo por retas; unir dois pontos A e B por um segmento de reta; ler o ângulo, que é constante, de reta; ler o ângulo, que é constante, que a linha de rumo faz com os meridianos;
- b) conservar os ângulos que as linhas de rumo fazem com os meridianos. Resultava assim que os paralelos e meridianos – que são linhas de rumo – eram representados por dois sistemas de retas paralelas, sendo as dos meridianos perpendiculares às dos paralelos; e
- c) Nunes recomendava a substituição da carta geral da Terra por uma série de cartas parcelares, por zonas, cuja altura seria maior ou menor segundo o grau de aproximação desejado (escala), tomando em cada zona o seu paralelo médio; tudo isto para evitar a deformação excessiva da superfície terrestre. As cartas parcelares eram reunidas num livro.” (MARTINS, 2005, grifo do autor).
Afirma Martins que as pontuações acima feitas por Nunes indicam semelhança com o modelo posteriormente lançado (1569) pelo flamengo Gerardo Mercator, onde os meridianos são planificados de forma que sejam ortogonais aos paralelos. Portanto, o pioneirismo do caráter ortodrômico da Carta Náutica pode ser atribuído a Nunes, e não a Mercator.
Construção naval – naus e caravelas
As caravelas eram embarcações ligeiras, de modesto deslocamento e fáceis de manobrar, podendo apresentar velas redondas ou latinas. As velas latinas representavam uma ampliação tecnológica no que tange à manobrabilidade, pois o barco conseguia navegar contra o vento, navegando à bolina. Isso dava à caravela a versatilidade de viajar por lugares os quais não se possuía dados acerca do vento, além da vantagem de mobilidade entre as frotas marítimas durante uma batalha naval. Caso as brisas cessassem, as caravelas poderiam utilizar os remos, instrumento herdado da Antiguidade e que ainda vigorava na maior parte das embarcações utilizadas na época.
Já as naus eram embarcações mais robustas que as caravelas, possuíam maior deslocamento e levavam em sua mastreação velas redondas. Durante a “Era dos Des cobrimentos”, a nau se desenvolveu e passou a possuir diversas bocas-de-fogo em seu costado, adquirindo assim uma função militar, mas também comercial, pois seu tamanho proporcionava o transporte de muitos produtos.
Conclusão
A Escola de Sagres tornou-se símbolo da doutrina marítima, da progressão técnica e da excelência dos navegadores que por lá passaram durante o século 15. Sua existência, contudo, é incerta, devido à falta de documentação e de vestígios da estrutura física da instituição.
Não obstante, Portugal viveu nesta mesma época uma revolução nos aspectos navais, com o surgimento de auxílios à navegação que são utilizados até hoje.
Portanto, devemos considerar Portugal como a verdadeira Escola de Sagres, exemplo de nação que centralizou esforços para quebrar o monopólio comercial entre o Ocidente e o Oriente e se consolidou como a principal potência do início da Era Moderna.
1 João, Maria Isabel – “Sagres, lugar mítico da memória”. In “Des(a)fiando discursos: Homenagem a Maria Emília Ricardo Marques”. Lisboa: Universidade Aberta, 2005, p. 409.
2 João, Maria Isabel – “Sagres, lugar mítico da memória”. In “Des(a)fiando discursos: Homenagem a Maria Emília Ricardo Marques”. Lisboa: Universidade Aberta, 2005, p. 411.
Autoria: Lucas Bonadias Pereira*; Raphael Rebouças Santana Silva**; Diogo Filipe Cardoso***
Data: 04 de maio de 2022
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(*) General da Marinha do Brasil
(**) General da Marinha do Brasil
(***) General da Marinha Portuguesa