Ano: 1808

Abertura dos portos às nações amigas

A abertura dos portos brasileiros às nações amigas foi um ato historicamente previsível e intrinsecamente relacionado ao processo de Independência do Brasil. Isso porque a história desse processo passa pela transferência da família real portuguesa para o Brasil e seus desdobramentos.

Em princípios do século XIX, a guerra que Napoleão movia contra a Inglaterra acabou por afetar toda a Europa Ocidental, especialmente a Coroa portuguesa. Após controlar quase toda aquela região, o imperador francês impôs um bloqueio ao comércio entre a Inglaterra e os demais países do continente. Portugal, que há muitos anos tinha na Inglaterra um importante aliado comercial, representava uma brecha no bloqueio que era preciso fechar. Desse modo, em novembro de 1807, tropas francesas cruzaram a fronteira de Portugal com a Espanha, com o objetivo de chegar a Lisboa.

Pressionado entre o poderio militar dos franceses e a influência econômica inglesa, o príncipe Dom João, que regia o reino desde 1792, decidiu em poucos dias pela transferência da Corte para o Brasil. Entre 25 e 27 de novembro de 1807, cerca de 10 mil pessoas embarcaram em navios portugueses rumo à colônia da América do Sul, sob a escolta de frotas britânicas. Todo o aparelho burocrático português veio para a colônia com o rei: ministros, conselheiros, juízes, funcionários do Tesouro, patentes do Exército e da Marinha, e membros do alto clero. Também foram trazidos o Tesouro real, os arquivos do governo, uma máquina impressora e várias bibliotecas. Ver em Chegada da família real portuguesa

Um dos primeiros atos de Dom João ao pisar em terras brasileiras, ainda na Bahia, em 8 de janeiro de 1808, foi decretar a abertura dos portos do Brasil às nações amigas, pondo fim a 300 anos de sistema colonial. Naquele momento, no entanto, a expressão “nações amigas” era equivalente apenas à Inglaterra.

Chegando ao Rio de Janeiro, “o príncipe regente revogou os decretos que proibiam a instalação de manufaturas na colônia, isentou de tributos a importação de matérias-primas destinadas à indústria, ofereceu subsídios para as indústrias da lã, da seda e do ferro, encorajou a invenção e a introdução de novas máquinas” (FAUSTO, 2018: 67).

Se era previsível a atitude do rei, ela foi também impulsionada pelas circunstâncias que, naquele momento, se colocavam. Ocupado por tropas francesas, Portugal não tinha condições de realizar seu comércio sem a intermediação dos ingleses. Nesse sentido, a legalização do contrabando entre a colônia e a Inglaterra tornou-se uma opção mais rentável do que simplesmente não perceber os tributos devidos.

A Inglaterra foi a principal beneficiária da medida, com o Rio de Janeiro tornando-se o porto de entrada de seus produtos manufaturados, cujo destino não se restringia apenas ao Brasil, mas também ao Rio da Prata e à costa do Pacífico. Já em agosto de 1808, a cidade contava com um importante núcleo de mais de 150 comerciantes ingleses (FAUSTO, 2018).

A abertura dos portos impactou significativamente o comércio transatlântico e a chegada de embarcações e produtos ao Brasil, diversificando ainda mais os negócios até então monopolizados pelo Antigo Sistema Colonial. A título de exemplificação, os autores Ilmar Mattos e Luís Albuquerque revelam que, ainda em 1808, chegaram aos portos do Brasil cerca de 90 navios estrangeiros, número que cresceu para 315 nas duas décadas seguintes. As estatísticas mostram, porém, o domínio do comércio com os ingleses, visto que, do total de navios que chegou ao Brasil em fins da década de 1920, 195 provinham da Inglaterra.

“Os comerciantes estrangeiros trouxeram uma infinidade de mercadorias: tecidos, sapatos, talheres, louças e cristais, chapéus, cachimbos, linhos e xales, ferragens, queijo e manteiga, escovas, pentes e navalhas, perfumes, sabonetes, velas, barbantes e caixões mortuários. E ainda muitos outros artigos de utilidade duvidosa para os habitantes do Brasil, como casacos de pele, patins para gelo, carteiras para notas (aqui não havia papel-moeda). (…) Junto com as mercadorias chegavam aos portos comerciantes e caixeiros-viajantes estrangeiros, representantes das firmas comerciais de seus países” (MATTOS & ALBUQUERQUE, 2003: 18).


Dom João VI com o decreto da abertura dos portos, em óleo pintado por A. Baeta. 
A Baeta – Acervo da Associação Comercial da Bahia.
Domínio Público.

Outro grupo que se beneficiou da abertura dos portos foi o dos proprietários rurais produtores de bens destinados à exportação, como o açúcar e o algodão. Depois de anos obrigados a comercializar somente com a metrópole, finalmente era possível vender a quaisquer compradores sem as restrições impostas pelo sistema colonial.

Grande foi o número de insatisfeitos com a nova medida. Entre os comerciantes do Rio de Janeiro e de Lisboa, a medida gerou grandes protestos, a ponto de Dom João ter decretado, em junho de 1808, a limitação do comércio aos portos de Belém, São Luís, Recife, Salvador e Rio de Janeiro.

O comércio entre os portos da colônia ficou restrito a navios lusitanos, e o imposto sobre produtos importados foi reduzido de 24 para 16% somente para os navios portugueses. Entretanto, rapidamente essas concessões deixariam de surtir o efeito desejado, pois os produtos ingleses tinham larga vantagem em relação aos produzidos em Portugal.

Segundo Boris Fausto, a abertura dos portos do Brasil era não apenas um resultado das circunstâncias vividas pela metrópole, mas representava a escalada inglesa pelo controle de mercados coloniais. Uma das etapas desse controle foi a assinatura do Tratado de Navegação e Comércio, assinado entre Inglaterra e Portugal em fevereiro de 1810.

“A Coroa portuguesa tinha pouco campo de manobra. Ela dependia do resultado da Guerra contra Napoleão para recuperar o território metropolitano e suas colônias eram protegidas pela esquadra britânica. O tratado de 1810 fixou em 15% do valor a tarifa a ser paga pelas mercadorias inglesas exportadas para o Brasil. Com isso, os produtores ingleses ficaram em vantagem até com relação aos portugueses. […] Sem proteção tarifária, as mercadorias de um país atrasado, como se tornara Portugal no âmbito do capitalismo europeu, não tinham condições de competir em preço e variedade com os produtos ingleses (FAUSTO, 2018: 68).

Apesar dos protestos, um retorno para o sistema colonial tradicional de outrora era uma possibilidade cada vez mais remota. Isso porque o sistema colonial montado segundo a lógica do capitalismo comercial, e em razão dos interesses do Estado absolutista, mostrava-se obsoleto com o advento do capital industrial.

Sobre o assunto, valem algumas explicações. A descoberta e a exploração das colônias europeias na América, no século XV, estão diretamente relacionadas com a formação do Estado Moderno, centralizado e absoluto, e com o desenvolvimento de uma poderosa classe de mercadores e armadores que se associaram à Coroa nos empreendimentos marítimos e colonizadores.

A empresa colonial, portanto, refletia essa aliança, cuja expressão teórica e prática foi a política mercantilista. O caráter restrito do mercado e os riscos do comércio transatlântico tornaram imperativa a criação de um regime de monopólios e privilégios que limitasse a concorrência e assegurasse os lucros, tanto da Coroa quanto dos mercadores. Consequentemente, os domínios coloniais foram impedidos de comerciar livremente, de modo que as exportações de seus produtos só podiam se dar através da metrópole, de onde importavam os produtos manufaturados. Cabe lembrar que as manufaturas também eram proibidas nas colônias (COSTA, 2010: 22).

Esse sistema atendia, primordialmente, aos interesses metropolitanos e não demorou para que se tornasse um obstáculo aos grupos interessados na produção em grande escala e na generalização e intensificação das relações comerciais. O extraordinário aumento da produção decorrente da mecanização era pouco compatível com os mercados fechados e as áreas enclausuradas pelos monopólios e privilégios.

A partir de então, o sistema colonial tradicional passa a sofrer duras críticas de diversos pensadores e teóricos. Toda a teoria econômica será reformulada, e os princípios mercantilistas serão substituídos pelas teses do livre mercado, do livre cambismo e da livre iniciativa. Parte integrante do liberalismo reinante na mentalidade das burguesias que reivindicam terreno livre para a Revolução Industrial, o “laissez-faire” mostrava-se uma doutrina bem mais adequada ao novo estágio de desenvolvimento econômico e dos interesses dessas novas categorias de empreendedores.


Monumento à Abertura dos Portos, na Praça São Sebastião, em Manaus.
Pedro Angelini – Flickr. 

Segundo Emília Viotti da Costa, a crítica à política mercantil pode ser identificada nos escritos de Adam Smith, o “pai” do liberalismo. A nova ideologia condenava os monopólios, a centralização das decisões econômicas por parte do Estado, os tratados de comércio e o trabalho servil. Defendia-se, portanto, a adoção de um regime de livre concorrência, com predominância do trabalho livre sobre o escravo (COSTA, 2010: 23).

“Da mesma forma, Jean Baptiste Say, num tratado de economia publicado em 1803, denunciava o caráter espoliativo do sistema colonial tradicional, frisando que as colônias, ao invés de trazerem benefícios para as metrópoles, eram onerosas. Obrigavam as despesas de manutenção do exército, burocracia civil e judiciária, construção de edifícios públicos e militares. De outro modo, em virtude do pacto colonial, a metrópole ficava obrigada a comprar produtos inferiores e mais caros provenientes das colônias, em vez de recorrer livremente a outros centros produtores (idem, ibidem).

Alguns teóricos procuraram focalizar o problema do Pacto Colonial na perspectiva das colônias, mostrando os seus inconvenientes para os povos americanos. Outros contribuíram ainda para a desmoralização teórica do sistema.

Apesar do desgaste, porém, dois fatores ajudaram a retardar o seu fim: “os múltiplos interesses ligados à sua existência e a diferença de ritmo das transformações econômicas e sociais que ocorriam nas várias regiões da Europa e da América envolvidas” (COSTA, 2010). Assim, enquanto os ingleses, pioneiros da Revolução Industrial, se preparavam para uma nova teoria da colonização baseada na livre concorrência, em Portugal procurava-se reforçar o sistema tradicional, posto que sua indústria era pouco ou quase nada desenvolvida.

Na historiografia brasileira sobre o processo, uma das obras mais clássicas é a de Fernando Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). O autor defende que a abertura dos portos é uma das pedras que sepulta o sistema colonial mercantilista, visto que o monopólio era, ao lado do regime escravista, um dos pilares de sustentação daquele sistema. Dessa forma, a derrocada do Antigo Regime e do absolutismo resultou de um processo no qual atuaram múltiplos fatores, como a já citada Revolução Industrial, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa.

Em resumo, a transferência da família real portuguesa para o Rio de Janeiro e a abertura dos portos, em 1808, foram fatos que prejudicaram profundamente os interesses metropolitanos, sendo a extinção do monopólio comercial a mais nefasta medida imposta aos portugueses.

Até a mudança da Corte, o comércio internacional português realizava-se majoritariamente com o Brasil. Portugal atuava como consumidor principal, mas também como entreposto comercial de tudo que era produzido em terras brasileiras. Os navios portugueses lucravam com os fretes marítimos, com as taxas alfandegárias, com o armazenamento e com a revenda dos produtos, fossem produtos primários, produzidos na colônia, ou manufaturados, produzidos em outras regiões e vendidos na América. A venda dos capitais investidos no comércio colonial também oferecia ampla base de tributação. Todo esse ciclo foi quebrado com a abertura dos portos e dos Tratados de Comércio com a Inglaterra.

De pouco valeram aos portugueses as medidas tomadas por Dom João VI para frear os prejuízos dos metropolitanos. A concorrência das nações mais desenvolvidas prejudicava os portugueses, que viam com nostalgia e fúria o fim dos privilégios e do exclusivo comercial.

Pressionado de todos os lados, o rei não agrada nem os súditos da metrópole, nem os da colônia, o que vai precipitar o processo de Independência do Brasil. Sendo obrigado a retornar a Portugal, em abril de 1821, para elaborar e aprovar uma Constituição para o país, deixa no Brasil, como príncipe regente, seu filho Pedro. Será em torno do príncipe que o movimento pela Independência se fortalecerá, cumprindo-se finalmente no dia 7 de setembro de 1822.

Com o fim do monopólio comercial, outras restrições também chegam ao fim. Estas restrições não são apenas materiais. Se, durante o período anterior, os colonizadores dificultavam a vinda de estrangeiros para o Brasil, censuravam livros, proibiam a imprensa e a circulação de ideias contrárias ao governo absolutista e à religião Católica, a partir de agora os estudiosos europeus seriam muito bem-vindos, trazendo com eles ideais revolucionários que já circulavam por aqui há algum tempo, mas de maneira clandestina. “Reis, rainhas e príncipes; nobres, fidalgos e funcionários, caixeiros-viajantes, artistas e estudiosos, suíços, franceses e alemães… Mercadorias úteis e outras nem tanto; livros e jornais; ideias de liberdade e de igualdade – quantas novidades!” (MATTOS & ALBUQUERQUE: 2003, 26).

Referências Bibliográficas:

CARDOSO, José Luís. A Abertura dos Portos do Brasil em 1808: dos Factos á Doutrina. Ler História, n. 54, p. 9-31, 2008.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos decisivos. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

MATTOS, Ilmar Rohloff de & ALBUQUERQUE, Luis Affonso Seigneur. Independência ou morte: A emancipação política do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003.

NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1986.

RICUPERO, Rubens. O problema da Abertura dos Portos. A abertura dos portos. São Paulo: Editora Senac, p. 16-59, 2007.