Ano: 1537
Porto do Recife
A história do Porto do Recife é documentada a partir do século XVI – embora sua função de porto tenha sido provavelmente conhecida em tempos anteriores –, quando Duarte Coelho tomou posse da Capitania de Pernambuco, chamada inicialmente de Nova Lusitânia. Naquele momento, o português deparou-se com os arrecifes de arenito que protegem a bacia dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió. Um dos primeiros registros oficiais que atestam a existência do local foi escrito pelo navegador português Pero Lopes de Sousa (MACHADO, s/d). Intitulado Diário de Navegação, o manuscrito detalha informações sobre a expedição de seu irmão, Martim Afonso de Sousa, ao Brasil, entre os anos de 1530 e 1532.
Os arrecifes avistados por Pero Lopes são formações geológicas naturais de milhões de anos, que se localizam no encontro entre o mar e a areia ao longo da faixa litorânea da atual cidade do Recife. Segundo Luiz Geraldo Silva, o vocábulo tem origem árabe (arasif) e representa não só a parede rochosa e contínua que margeia a orla desta costa, mas também a sociedade marítima que surgiu em Pernambuco na segunda metade do século XVI (2020, p. 245).
A formação do Porto do Recife, porém, é, segundo Silva, um “processo sem começos”. Primeiramente, foram os habitantes nativos de origem tupi que reconheceram, naquela formação rochosa, um ancoradouro natural e se referiam a ele como “pernambuco”, que também significa “mar furado” (SILVA, 2020, p. 245).
Justamente por ser um porto cuja fundação não pode ser precisada, são necessárias algumas observações sobre a data utilizada na construção desse marco histórico. Pero Lopes de Sousa escreve em seu diário que a chegada da expedição na costa de Pernambuco se deu em janeiro de 1531, deparando-se com franceses que dali contrabandeavam pau-brasil.
Sobre o episódio, o navegador descreve: “A 31 de janeiro, dia seguinte, vem a armada a avistar littoral pernambucano, um pouco ao norte do cabo de Santo Agostinho, aonde enxergou o vulto de uma nau franceza: (A). Deu caça a nau inimiga vindo della a apossar-se na altura do cabo de Percaauri, ou melhor, do cabo de Pero Cabarigo ou ponta de Pero Cavarim. Fica este cabo ou ponta a cerca de 14 milhas ao sul de Olinda, passando quem vem costeando do norte, a boca do arrecife, ou a barra do arrecife, a barreta e o surgidouro dos Curraes” (DE CASTRO et alii, 1927, p. 107).
Nos comentários feitos por Eugenio de Castro na edição citada do Diário, revela-se que a “barra do arrecife” é justamente esse local no qual se identifica o Porto do Recife ou “Porto de Pernambuco”, como se costumava chamar à época (1927, p. 127).
Conservando e ampliando as suas funções, o porto deu origem à cidade do Recife, fundada como Vila em 1537, por Duarte Coelho, que, dois anos antes também havia fundado o povoado de Olinda. Por ser a data em que constam os registros oficiais sobre a fundação da Vila do Recife e também a ampliação das funções do porto, optou-se pelo ano de 1537 como marco temporal para este tema – Porto do Recife –, ressalvando que o local já era utilizado anteriormente para o trânsito de embarcações e a comercialização de produtos por rotas internas e externas.
A partir da década de 1530, quando se estabelecem as primeiras medidas para a colonização e ocupação do território, o local tem ampliadas suas funções, de maneira significativa, como centro comercial. Inicialmente, foram instituídas na região as chamadas feitorias que, pouco a pouco, foram substituídas por entrepostos e povoações em torno da região portuária. Com o desenvolvimento da colonização, o porto passou a controlar chegadas e saídas de produtos, contribuindo para o fortalecimento do abastecimento interno.
Porto e parte da cidade do Recife. Gravura, 15 de fevereiro de 1877.
Acervo digital Biblioteca Nacional.
A rota de mercadorias para o Atlântico fez da região um local propício para o surgimento dos primeiros engenhos de açúcar, além das primeiras vilas que deram origem ao “Bairro do Recife”. No início do século XVII, o Porto do Recife já era o mais movimentado da América portuguesa e, por isso, sofria as frequentes tentativas de invasão por parte dos corsários franceses, ingleses e holandeses.
Mário Rodrigues Sette, escritor e romancista recifense, nascido em fins do século XIX, produziu importantes obras que analisam a identidade pernambucana e a sociedade portuária que deu origem à cidade do Recife. Membro da Academia Pernambucana de Letras, escreveu o livro Porto do Recife, publicado em 1945:
“A bem dizer o pôrto foi a pia batismal da nossa cidade. Quando Deus sonhou com este formoso e movimentado núcleo de homens, traçou-lhe os arrecifes defronte, com uma muralha de proteção no mar-alto e zangado. Dali por diante as ondas, por mais bravias, encontrariam obstáculo rijo e permanente, enquanto o rio poderia se aquietar lá dentro, correndo manso e acolhedor até a foz. Estava criado o nosso ancoradouro” (1945, p. 5).
Para Sette, enquanto Olinda se constituía uma notável vila para morada, administração e defesa, era no “povoado dos Arrecifes” que chegavam os navios da Europa, “trazendo os produtos da civilização” e para lá conduzindo nossa produção de açúcar.
A vila de Olinda e o porto do Recife no fim do século XVI.
Do códice da Biblioteca da Ajuda: Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas que há na costa do Brasil.
Século XVI.
Domínio Público.
A natureza portuária da região, que remonta a períodos anteriores à chegada dos portugueses e à fundação da Vila do Recife, era, portanto, propícia ao surgimento de uma estrutura urbana e comercial que estimulasse o desenvolvimento do porto e dos bairros que o margeavam.
Por esse motivo, o historiador Luiz Geraldo Silva entende que o porto e a cidade do Recife constituem uma verdadeira sociedade marítima. “Entendo por “sociedades marítimas” figurações sociais formadas por seres humanos cujo equilíbrio instável de poder se baseia nos diferenciais de saber tanto sobre a natureza pré-humana como sobre o saber-fazer ligado à navegação e/ou à pesca em um território marítimo específico” (SILVA, 2020, p. 247).
Assim, por atrelar uma maneira própria de desenvolver os hábitos e o modus operandi da população e da economia, as funções portuárias dos “arrecifes”, que depois se transformaram em Porto, foram diretamente responsáveis por moldar a dimensão humana daquela região.
Em grande medida, esse desenvolvimento esteve vinculado à expansão das lavouras e dos engenheiros de cana-de-açúcar, cuja produção escoava do Porto do Recife para o exterior e para as outras províncias da colônia (ver Cana-de-açúcar: da lavoura ao transporte). Vale destacar que, nas primeiras décadas do século XVII, a Capitania de Pernambuco possuía quase o dobro de engenhos que sua principal concorrente, a Bahia (SILVA, 2020, p. 250).
Assim, um outro fator crucial para entender o desenvolvimento da sociedade marítima em torno do Porto do Recife é a escravidão (ver Escravidão e tráfico de escravos), que constitui pilar do Antigo Sistema Colonial e da “plantation”. Com o fluxo de navios negreiros advindos principalmente da costa atlântica, Recife conseguiu estabelecer comércio direto com portos africanos, servindo como uma espécie de centro de distribuição para capitanias como a do Rio de Janeiro, no princípio do século XVIII.
De acordo com Luiz Geraldo Silva, em fins do século XVI, os desembarques nos arrecifes somavam mais de 60% do comércio de escravos em toda a América Portuguesa (2020, p. 251). Entre 1621 e 1630, foram 95.199 indivíduos desembarcados, dos quais mais de 44% permaneceram na região.
O grande fluxo de escravos, mercadorias e estrangeiros que atracavam em Recife acarretaria o desenvolvimento social e econômico da região. Com isso, a expansão dos negócios ultramarinos impactou positivamente no aumento dos fluxos internos, ampliando também as atividades comerciais entre e intra províncias. O Porto do Recife, portanto, desempenhou um papel importante na conformação de redes que vinculavam a zona litorânea à chamada “hinterlândia” (SILVA, 2020, p. 247).
Assim como os portos de Salvador, do Rio de Janeiro e de São Luís do Maranhão, o Porto do Recife pode ser considerado um “porto Atlântico”. Para os pesquisadores Marco Volpini Micheli e Thiago Dias, esses locais caracterizam-se como largas faixas de terra banhadas por mar – no caso do Recife, localizada na confluência dos rios Capibaribe e Beberibe –, “que desaguam no oceano Atlântico, com profundidade suficiente para naus de grande porte e protegida por águas abrigadas para seguro ancoradouro” (2020, p. 31).
Tais embarcações são capazes de fazer navegações diretas em direção à Europa ou à África, ao contrário de navios de pequeno ou médio porte, que transitam por rotas fluviais internas e atracam nos chamados “portos continentais”. Estes, de acordo com os pesquisadores, caracterizam-se por ser “pequenos trechos de terra junto ao mar ou rios distribuídos pela porção continental da América portuguesa”, possuindo profundidade para atracar embarcações de pequeno e médio porte (MICHELI, DIAS, 2020, p. 29).
Para configurar-se como um porto atlântico, no entanto, era preciso conjugar, num mesmo espaço, um “complexo sistema alfandegário, excelente estrutura portuária para naus de grande porte e rotas de navegação direta e regular para Portugal e portos do continente africano” (idem, p. 31).
Assim, o Porto do Recife caracteriza-se por ser, desde o século XVI – mas principalmente após 1711, quando se especializa o aparato fiscal da Alfândega da cidade, com a reimplementação do imposto de 10% sobre os produtos importados –, um porto de interligação (gateway) com uma região (hinterland) específica (idem, p. 33).
Recife, Iconográfico.
Van Rogger, 1948.
Acervo Digital, Biblioteca Nacional.
Desde o século XVI, tanto Recife como outros portos atlânticos do Brasil Colonial – Salvador e Rio de Janeiro, principalmente – promoveram redes de comércio complexas. Ao contrário do que a teoria do “exclusivo” comercial defende, os registros sobre as atividades portuárias demonstram múltiplas escalas de navegação, que se desdobravam em negócios de escala global.
Em documento da Alfândega da Capitania de Pernambuco, citado pelos historiadores Marco Micheli e Thiago Dias, identifica-se informações como a procedência de navios, nomes dos mercadores, quantidades de açúcar embarcadas, entre outras. É possível encontrar também os registros de origem das embarcações que chegavam até Recife. A produção açucareira e as atividades dela decorrentes eram o estímulo fundamental para que o comércio da capitania fosse além do exclusivo comercial.
“Essa primeira fase, que vai até aproximadamente 1630, corresponde à época em que Pernambuco se manteve como a principal área produtora de açúcar nas Américas. Os navios que aportaram no porto de Recife vinham além dos portos portugueses de Lisboa, Porto, Viana do Castelo, das Praças mercantis do norte da Europa, como Amsterdã, Antuérpia e Bruges (atual Bélgica) dos Países Baixos; Hamburgo, Lubeck e Emden, praças hanseáticas do atual território da Alemanha; o porto de Bergen no mar da Noruega, entre outros” (MICHELI. DIAS, 2020, p. 36).
O que se nota, portanto, é que as cidades portuárias como Recife tinham contatos muito mais diversificados, adquirindo uma certa característica “cosmopolita” (guardadas as devidas proporções e considerados os limites da época). Isso prova que, conforme afirma Rodrigo Ricupero, o exclusivo comercial não vigorou por completo desde o início da colonização (2016).
A tendência diversificadora do Porto do Recife foi aprofundada com as transformações suscitadas pelo período em que os holandeses ocuparam a região. Depois de desembarcarem ao norte da cidade de Olinda, capital da Capitania, em 1630, os holandeses dominaram todo o litoral pernambucano e a cidade dos arrecifes, onde edificaram e fizeram prosperar, na entrada do porto, a sede dos seus domínios.
Uma das interpretações mais clássicas da invasão holandesa do Brasil é a de Evaldo Cabral de Mello, que entende que a guerra foi uma luta pelo controle da produção do açúcar nas Américas (FAUSTO, 2006, p. 84).
As motivações que levaram os holandeses a escolherem o Brasil e o Nordeste como local para estabelecerem suas bases comerciais são diversas. Uma delas, de acordo com Evaldo Cabral, é justamente o fato de que o Nordeste possuía uma grande quantidade de rios que poderiam ser usados no processo de moagem, produção e transporte do açúcar, desde os engenhos até os portos (CABRAL DE MELLO, 2010).
Além disso, os portos já estabelecidos em cidades como Recife e Salvador, configuravam-se como pontos estratégicos para o escoamento dessa mercadoria tanto para a Europa quanto para a África. Nutria-se também o desejo de estabelecer uma base que, pelo Brasil, pudesse alcançar um caminho mais curto até as minas de prata do Peru.
De acordo com Micheli e Dias, um dos objetivos da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais com a conquista de Recife era justamente a “possibilidade de manter um relevante entreposto comercial holandês na América, além de uma estrutura portuária para recomposição das naus, que ligasse a Europa Ocidental, a África centro-ocidental e o Caribe” (2020, p. 38).
A guerra suscitada pela invasão holandesa pode ser dividida em dois momentos cruciais. No primeiro, entre 1630 e 1632, os holandeses buscaram conquistar os fortes e os povoamentos estabelecidos na zona litorânea, mas fracassaram nas tentativas de conquistar a Paraíba, o Rio Grande do Norte, e o Cabo de Santo Agostinho (CABRAL DE MELLO, 2010). Ocupando o sul da ilha de Itamaracá, fundaram o Forte Orange, o que permitiu que os invasores fizessem incursões bélicas e navais mais promissoras em territórios fora do eixo Olinda-Recife.
Vale destacar que, a princípio, a guerra causou impacto econômico negativo na cidade do Recife, o que refletiu no fluxo de embarcações que atracavam e deixavam o porto, bem como no comércio do açúcar.
Segundo Evaldo Cabral de Mello, uma das consequências desse refluxo foi o rearranjo da utilização de pequenos portos pela província de Pernambuco, que se tornaram alternativas ao Porto do Recife quando de sua ocupação pelos holandeses. Muitos senhores de engenho e comerciantes locais desconfiavam dos neerlandeses e, por isso, resistiram em fazer negócios com os estrangeiros durante os primeiros anos da ocupação.
Cabral de Mello salienta que, “antes de 1630, os pequenos portos ao norte e ao sul do Recife eram utilizados com frequência durante os meses de verão. Só no Recife e na Paraíba, os senhores de engenho e comerciantes de açúcar dispunham de transporte para o Reino Unido durante todo o ano. A queda do Recife em 1630 determinou uma redistribuição da navegação em favor da Paraíba e também dos portos menores, especialmente o do Cabo de Santo Agostinho (local onde atualmente encontra-se o Porto de Suape – n.a.), os quais passaram a ser mais procurados, escoando em conjunto mais açúcar que o porto da Paraíba” (2010, p. 121).
Para consolidar sua ocupação, entre os anos de 1632 e 1637, os holandeses atacaram as bases rurais da resistência portuguesa, principalmente os engenhos, destruindo plantações e intimidando as comunidades locais. Esse período resultou na conquista da cidade de Paraíba. Ao todo, o poder holandês se estendeu entre o Ceará e o Rio São Francisco (FAUSTO, 2006, p. 85).
Com o fim da resistência portuguesa, cujo exército encontrava-se desgastado e impopular em algumas regiões da ocupação holandesa, abre-se um novo período. Entre 1637 e 1644, o governo do príncipe holandês João Maurício de Nassau foi caracterizado por uma relativa paz e pela implementação de medidas políticas e administrativas importantes (FAUSTO, 2006, p. 85).
João Mauricio de Nassau.
Provavelmente Michiel Jansz van Mierevelt, 1637.
Domínio público.
Uma delas foi justamente a reativação da economia açucareira com a venda de créditos para os engenhos abandonados. Além disso, estimulou o abastecimento para promover o povoamento da região. Conforme analisa Boris Fausto, Nassau era tolerante com as diferenças religiosas. Permitiu aos cristãos novos – designação que caracteriza judeus que se converteram ao catolicismo para fugir da perseguição religiosa – que professassem sua fé, o que fez do Recife a primeira cidade das Américas a ter uma sinagoga, chamada de Sinagoga Kahal Zur Israel (“Rocha de Israel”).
Com a missão de tornar os espaços de ocupação holandesa mais rentáveis à Companhia das Índias Ocidentais, Nassau diversificou as funções do Porto do Recife. A estrutura do local havia sido reconstruída pela Companhia depois que grande parte de suas instalações e das casas que o rodeavam foram afetadas e queimadas pelas batalhas no período da ocupação (SILVA, 2020, p. 256).
Dentre as medidas encaminhadas, dotou-se o porto de um regulamento e de um “capitão do porto”, função nunca exercida antes no Brasil Colônia (idem, ibidem). Determinou-se também a proibição de lançar lastro e sujeira das embarcações no mar, a fim de não prejudicar a boa condição do ancoradouro. Os restos deveriam ser encaminhados ao porto por um bote.
Ao redor do porto, a reconstrução das casas e edifícios destruídos pela guerra foi planificada. Essas reformas deram ares modernos à cidade e concederam boas condições para o atracamento e o “pouso” de comerciantes e navegadores. Além disso, para evitar contrabandos, Luís Silva assinala que se cercou a alfândega com “abatises”, obstáculos de natureza militar composto de ramos e troncos de árvore dispostos de forma adequada contra os inimigos.
Uma das grandes mudanças da região foi a abertura de vias que melhorassem a conexão entre os diversos pontos da vila, como a pavimentação de caminhos, a criação de estradas e a construção das famosas pontes entre o Recife e a Ilha de Antônio Vaz. “Sua função era facilitar o escoamento das mercadorias entre a ilha de Antônio Vaz e o porto, mas, para isso, havia que se pagar. Ficou estabelecido que as taxas de pedágio seriam de “2 vinténs para pedestres civis, 1 para soldados e negros, 4 para cavaleiros e 7 para carros de bois”” (SILVA, 2020, p. 259).
Todas essas mudanças na infraestrutura fizeram do Recife um porto ainda mais acessível para o escoamento e entrada de mercadorias. Segundo Charles Boxer (1961), depois do apaziguamento da guerra no primeiro período da ocupação holandesa, a administração de Maurício de Nassau conseguiu, por meio do fomento da atividade açucareira e da reconstrução de engenhos, vincular áreas produtivas dos interiores do território até a zona portuária, melhorando o fluxo de carros de bois com a abertura dos caminhos. Além disso, o controle das rotas de navegação interna e o ordenamento de portos em rios melhorou o trânsito de embarcações pequenas, agilizando o transporte de cargas entre o Atlântico e o interior da província.
Obviamente, tais medidas estavam vinculadas com o objetivo de controle dessas possessões por parte dos holandeses. A melhoria dos meios de transporte tornou-se fundamental para a manutenção da defesa do território e para a lucratividade das atividades comerciais fomentadas pela Companhia das Índias Ocidentais.
No que se refere aos deslocamentos internacionais, a presença holandesa ampliou as conexões entre Recife e outras partes do Atlântico, como o Caribe. Para o historiador Rômulo Xavier do Nascimento, antes da invasão holandesa, Recife tinha uma característica de “cidade-etapa”, tendo Lisboa como “cidade-polo” (NASCIMENTO, 2008, p. 60)
A partir de 1630, a cidade e o Porto do Recife deixaram a condição de “povo” para a de núcleo urbano, enfrentando, com isso, as consequências da explosão demográfica. “O Recife deixava de ser um “burgo triste e sem vida” para ser um importante entreposto comercial para os Países Baixos, pelo menos para uma parte da burguesia em Amsterdam” (idem, ibidem).
Essa ampliação das rotas de comércio intensificou o comércio de açúcar, de escravos e de gêneros de abastecimento. Além disso, fez do Recife um importante ponto de ligação com canais fluviais internos, pelos quais transitavam embarcações menores e que chegavam até as regiões mais afastadas da costa.
Documentos recuperados por Rômulo Nascimento revelam que, já na década de 1630, embarcações partiram do Recife com diferentes percursos pelas ilhas de Barbados, Santa Lúcia, Martinica, São Domingos, São Martinho, Tortugas, Bonaire e Cuba. Além disso, “aliada à navegação de longo curso, temos uma navegação de cabotagem que se somava à navegação dos rios do Nordeste oriental” (2012, p. 15).
Grande variedade de embarcações era utilizada em diferentes vias de navegação, tanto internas como externas. Numa tabela organizada pelo pesquisador, constam as embarcações que entraram e saíram do Porto do Recife em 1635 (2012, p. 20). Cruzadores e navios, em geral, procediam de outros países ou de outros “portos atlânticos”. Já os barcos, iates, chalupas e galeotas eram provenientes de pequenos portos ou entrepostos fluviais de outras capitanias e de ilhas próximas.
Além disso, as informações revelam a variedade de produtos que entravam e saíam do local. Dos Países Baixos, geralmente provinham munições, provisões diversas, víveres e artigos para o comércio. Da Paraíba e do Sul de Pernambuco, eram transportados açúcar e pau-brasil para a Europa. Além disso, da colônia, exportava-se bananas, coco e lenha (NASCIMENTO, 2021, p. 20-35).
A principal “mercadoria” que entrava em território brasileiro eram os africanos escravizados advindos dos portos atlânticos da África. Mesmo após o fim da ocupação holandesa e a restauração do domínio português, em 1654, Pernambuco continuou sendo a principal província produtora de açúcar da colônia, o que demandava grande abastecimento da mão de obra para a “plantation”.
Em grande medida, as facilidades de viagem direta entre Recife e portos da África atlântica, como Luanda, foram responsáveis por fazer da cidade, durante boa parte do século XVI até a década de 1730, o principal ponto de chegada e distribuição dos navios negreiros, para estados do Nordeste e, também, do Norte do país.
Segundo Marco Micheli e Thiago Dias, dados do The Trans-Atlantic Slave Trade Database “mostram que, durante o século XVIII, ancoraram no porto do Recife pelo menos 570 navios negreiros vindos dos portos africanos” (2020, p. 40-41). Do Recife, portanto, chegavam e saíam embarcações, que se distribuíram por outras províncias do Norte do estado, fazendo do local o único porto de movimentação negreira da região.
Elevada à condição de Vila a partir de 1709, Recife viveria mais um conflito, a Guerra dos Mascates (1710-1712), que marcou a disputa entre grupos antagonistas, como senhores de engenho e comerciantes portugueses. Em grande medida, o conflito era uma consequência do refluxo da produção e da economia açucareira causado pela concorrência dos holandeses estabelecidos nas Antilhas.
Planta da vila do Recife 1760 (século XVIII).
Autor desconhecido.
Publicação da Prefeitura da Cidade do Recife.
Detalhes à parte, no que tange à sua capacidade exportadora e importância no comércio e transporte atlântico, “Recife tendeu a consolidar seu papel de principal porto exportador de um sistema administrativo nascido a partir desse mesmo período – aquele designado pela expressão “Pernambuco e capitanias anexas”” (SILVA, 2020, p. 264).
É impressionante a quantidade de produtos, portos e países com os quais Recife mantinha relações de comércio em meados do século XVIII. O pesquisador Luiz Geraldo Silva recuperou uma lista elaborada pelo então governador e capitão general da capitania de Pernambuco, Luís Correia de Sá, em 1749, que revela detalhes importantes (2020, p. 265-266).
Dentre os portos que mantinham relações com Recife, estavam Lisboa, Cidade do Porto, Angola, Açores, Madeira e Costa da Mina. Internamente, Recife tinha conexões com os portos do Rio de Janeiro, Bahia, Camocim, Ceará, Mundaú, Jaguaribe, Parnaíba e Assu. Dentre os produtos exportados, estavam o açúcar, melaço, ouro, madeiras, óleo de copaíba, tabaco, aguardente, redes, chapéus, doces, arroz e algodão. Internamente, desde Recife se distribuíam, entre os portos do Brasil Colônia, produtos como panos de algodão, aguardente, tabaco, farinha, melaço, obras de ferro, couro de cabra e, principalmente para o Rio de Janeiro, escravos da Costa da Mina.
Constavam das importações escravos e produtos, como azeite de peixe, marfim, cera, tecidos diversos de linho e de seda, âmbar, esteiras e muitos outros.
No século XVIII, as transações referentes ao tráfico de escravos, colocaram o Porto do Recife numa posição de destaque entre os portos continentais do Brasil Colônia. “Entre 1742 e 1759 […], dos 54.572 escravos traficados pelos grandes comerciantes em Pernambuco, 39% seguiram para outras capitanias, e sobretudo para o Rio de Janeiro, para, daí, seguirem para Minas Gerais. Avalia-se, ademais que um percentual muito maior do que esse era registrado entre as décadas de 1720 e 1740” (SILVA, 2020, p. 267).
Em 1815, foram encaminhadas as primeiras iniciativas para a realização de melhoramentos no antigo ancoradouro do Recife. No decorrer do século, portanto, foram elaborados diversos projetos, sem que sua execução prosperasse por completo.
Somente em 1º de julho de 1909, com a publicação do Decreto nº 7.447, a empresa Société de Construction du Port de Pernambuco foi autorizada a construir as novas instalações, compreendendo 2.125 m de cais e três armazéns.
De acordo com as informações oficiais do site do Porto do Recife, a entrada em operação comercial ocorreu em 12 de setembro de 1918. Pelos Decretos nº 14.531 e nº 14.532, ambos de 10 de dezembro de 1920, ficou definida a transferência da concessão do porto para o governo estadual, que deu prosseguimento às obras da sua implantação, concluindo mais cinco armazéns, um galpão e começando o prolongamento do cais.
Essa concessão, porém, foi revista e aprovada pelo Decreto nº 1.995, de 1º de outubro de 1937, e encampada, posteriormente, pelo Decreto nº 82.278, de 18 de setembro de 1978, pela Empresa de Portos do Brasil S.A. (Portobras), extinta em 1990, passando o Porto do Recife à administração da União até maio de 2001 (PORTO DO RECIFE S/A, s/d).
Com a celebração do Convênio de Delegação nº 02, de 1º de junho de 2001, entre o Governo do Estado de Pernambuco e a União Federal, a administração e exploração do Porto Organizado do Recife passaram a ser realizadas por aquele estado, por intermédio da empresa Porto do Recife S.A.
O Porto e a cidade do Recife, portanto, são partes de uma mesma história e de uma mesma origem. Dos arrecifes naturais que se levantam às margens da cidade, nasceu uma complexa sociedade portuária e marítima, cuja identidade se vincula às atividades e aos períodos históricos desse processo.
Não à toa, Carlos Pena Filho (1999) descreve Recife como uma cidade que se divide entre a terra e o mar, entre os homens e a imaginação:
“No ponto onde o mar se extingue / E as areias se levantam / Cavaram seus alicerces / Na surda sombra da terra / E levantaram seus muros. / Depois armaram seus flancos: / Trinta bandeiras azuis / Plantadas no litoral. / Hoje, serena, flutua, / Metade roubada ao mar, / Metade à imaginação, / Pois é do sonho dos homens / Que uma cidade se inventa”.
Referências bibliográficas:
DE CASTRO, Eugenio; DE ABREU, Capistrano; DE SOUSA, Pero Lopes. Diário da navegação de Pero Lopes de Sousa: 1530-1532: estudo crítico. Rio de Janeiro: Typographic Leuzinger, 1927.
CABRAL DE MELLO, Evaldo. O Brasil Holandês (1630-1654). São Paulo: Penguin e Cia das Letras, 2010.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006, 12ed.
FILHO, Carlos Pena. Guia Prático da Cidade do Recife – O Início, 1999. Disponível em: https://charrua-oriental.blogspot.com/p/carlos-pena-filho-sobre-o-recife-o.html
GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial, vol. 04. Lisboa: Editorial Presença, 1983.
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. “Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o atlântico no brasil holandês”. Clio-Revista de Pesquisa Histórica (ISSN 0102-9487), n. 29.2, 2012.
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O “desconforto da governabilidade”: aspectos da administração no Brasil holandês (1630-1644). Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense, 2008.
MACHADO, Regina Coeli Vieira. Porto do Recife. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 12 de maio de 2021.
MICHELI, Marco Volpini & DIAS, Thiago (org). Portos coloniais: estudos da história portuária, comunidades marítimas e praças mercantis, séculos XVI-XIX. São Paulo: Ed. Alameda, 2020.
RICUPERO, Rodrigo. O estabelecimento do exclusivo comercial metropolitano e a conformação do antigo sistema colonial no Brasil. História (São Paulo), v. 35, 2016.
SETTE, Mário. Porto do Recife. Recife: Diretoria de Documentação e Cultura, 1945.
SILVA, Luiz Geraldo. “Porto do Recife. Sociedade Marítima, escravidão e liberdade (Séculos XVI e XVIII)”. In. MICHELI, Marco Volpini & DIAS, Thiago (org). Portos coloniais: estudos da história portuária, comunidades marítimas e praças mercantis, séculos XVI-XIX. São Paulo: Ed. Alameda, 2020.